terça-feira, 27 de outubro de 2020

Coisa do gênero

 “A Constituinte será feminista, ou não será”: jogadoras de futebol do Chile têm papel ativo na luta por nova Constituição no país.

Atletas usam suas vozes para se manifestar politicamente e reivindicar igualdade de gênero e social.

“Juntas fazemos história. Juntas nos cuidamos. Juntas aprovamos e escolhemos a Convenção Constitucional.” 

É assim que termina o vídeo publicado em 18 de outubro por um grupo de nove mulheres chilenas. Jogadoras e ex-jogadoras de futebol, elas se uniram em torno da campanha por uma nova Constituição.

Um ano depois do início das manifestações que tomaram as ruas do Chile, a população teve a chance de escolher se é chegada a hora de uma nova Carta para reger o país. 

A atual, de 1980, é a mesma desde os tempos da ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990). 

Dos 7,5 milhões de cidadãos que foram às urnas, 78% votaram pelo “aprovo”, um sonoro "sim" à nova Constituição.

Um desses votos foi o da Iona Rothfeld. 

Outros tantos podem ter sido influenciados por ela. 

Iona é uma das personalidades do futebol chileno que mais defenderam a necessidade da convenção constitucional. 

Membro da Assembleia Feminista Plurinacional do Chile, foi dela a ideia de reunir algumas companheiras para incentivar a participação popular (e principalmente a participação feminina) no plebiscito de 25 de outubro.

"Não é só pelo forte simbolismo de termos uma Constituição criada na Ditadura. A importância de trocá-la reside no fato de que muitos direitos não estão contemplados na Carta atual. A sociedade chilena tem uma Constituição que reproduz e agrava as desigualdades em nosso país", disse a ex-jogadora da Universidad Católica e da seleção chilena em entrevista exclusiva ao Coisa do Gênero.

A desigualdade citada por Iona é uma das principais reclamações da população chilena a respeito da Constituição de 1980. 

Uma das marcas da ditadura de Pinochet foi a privatização de serviços públicos básicos. 

Com isso, o acesso à educação, saúde e previdência social de qualidade fica restrito a quem tem como pagar (caro).

O engajamento e a participação política de Iona não são de hoje. 

Formada em ciência política pela Universidade Saint Thomas, em Miami, ela é sócia fundadora da ANJUFF, a Associação Nacional das Jogadoras de Futebol Feminino do Chile, criada em 2016 com o objetivo de melhorar as condições do esporte para mulheres e defender os interesses das atletas. 

A instituição conta com um protocolo contra abuso, assédio e outras formas de discriminação, além de ter um espaço para as jogadoras denunciarem esse tipo de conduta.

Embora acredite que a modalidade tenha avançado no país nos últimos quatro anos, Iona defende que ainda há muito a ser feito.

"Muitos clubes resistem a mudanças. Resistem a deixar de enxergar o futebol feminino como uma despesa, para passar a vê-lo como um investimento. Hoje temos 34 clubes em duas divisões (A e B) e apenas duas equipes têm contratos profissionais, o que não garante nem que as jogadoras recebam o salário mínimo", conta Iona.

Outra voz de destaque no vídeo das jogadoras chilenas e no futebol feminino do país é a da lateral Fernanda Pinilla. 

Atleta do Universidad de Chile e da seleção chilena de futebol, ela foi presidente da ANJUFF em 2017. 

No ano passado, chegou a se filiar ao Convergencia Social, mas já não faz parte dos quadros do partido de esquerda. 

Mesmo assim, nunca deixou de se manifestar politicamente.

"Se construiu a figura do jogador (e falo “do jogador” porque essa sempre foi vista como uma figura masculina) que não sabe de política. Por isso, muitas vezes nós, jogadores, não nos sentimos validados a ter opinião. Acho que existe essa visão de nos excluírem da política, também porque podemos ser referência para mais pessoas, e contagiar mais pessoas para que falem e se expressem, mas temos todo o direito de falar a respeito do que vivemos", avalia Fernanda.

Uma das principais bandeiras defendidas tanto por Fernanda quanto por Iona é a da igualdade de gênero. 

E um passo importante foi dado nesse sentido no Chile. 

No plebiscito do último domingo, a maioria da população decidiu que a Assembleia Constituinte que redigirá a nova Carta será formada por homens e mulheres em igual proporção.

"Somos a primeira Constituição do mundo a ser escrita pelo mesmo número de homens e mulheres. Isso já garante a paridade de gênero em sua criação e facilita que o documento contenha efetivamente uma perspectiva de gênero. Os movimentos feministas têm sido parte importante dos movimentos sociais e de pressão pelo plebiscito. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas a perspectiva de gênero, a igualdade de gênero e a busca pela a redução das brechas de desigualdade são questões prioritárias neste processo", afirma Iona.

"Espero que a mulher seja vista como um sujeito com direitos. Espero que possamos decidir pelos nossos corpos. E que as oportunidades sejam as mesmas. Que o nosso futuro não seja definido ou limitado pelo nosso gênero", defende Fernanda.

Jogadoras de futebol convivem de perto com o machismo. 

Ex-atleta do Universidad Católica, Iona afirma que o futebol sul-americano ainda é um espaço hipermasculinizado e sexista, mas acredita que "toda jogadora de futebol é feminista" por não entrar em campo esperando um tratamento pior que aquele que é dado aos homens.

"Estar em um campo de futebol na América do Sul sendo mulher já é difícil. É uma região muito machista. Estamos lutando contra essa normalização que historicamente quis nos impor que o campo de futebol não é lugar das mulheres, ou que devemos nos dedicar a um esporte mais "feminino". Como se jogando futebol renunciássemos à feminilidade. Como se "o feminino" não fosse uma construção social", afirma.

Iona e Fernanda usam suas vozes para lutar por uma sociedade em que acreditam. 

Uma sociedade mais justa, mais democrática. 

Elas entendem sua responsabilidade na construção do futuro do país. 

Mas não muito longe dali, atletas que se manifestam politicamente são punidos pelas autoridades.

Recentemente, a jogadora de vôlei de praia Carol Solberg recebeu uma advertência da Primeira Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) por ter gritado “Fora, Bolsonaro” depois de uma partida do Circuito Brasileiro da modalidade. 

Carol foi proibida de repetir a manifestação, sob risco de receber punições mais severas. 

A defesa da jogadora entrou com recurso.

"Acho muito importante quando as jogadoras assumem abertamente esse papel de mostrar suas posições políticas. O que é pessoal é também político, e mais ainda para as mulheres, que sempre enfrentam limitações devido ao gênero", opina Iona.

Fernanda destaca que antes de serem atletas, esses profissionais são, assim como os engenheiros, médicos, médicas, professoras ou professores, pessoas. 

Ela acrescenta que, por isso, trabalhadores do esporte também têm direito a expressar sua opinião.

"Só pelo fato de sermos pessoas e por estarmos vivendo em comunidade, somos políticos. Tudo que acontece nos afeta e podemos ter uma opinião a respeito. E toda opinião é completamente válida. Muitos atletas têm suas crenças políticas e ideológicas, mas existe um medo de expressar a opinião e perder apoio. O que eu posso evidenciar é que no futebol feminino, existimos várias que, com uma postura política, nos manifestamos. E não temos medo. Ser mulher no Chile é difícil, porque não temos nada ganho. Então acho que não tenho nada a perder ao dizer o que penso", finaliza.

Reportagem: Globoesporte.globo.com

Adaptação: Eduardo Oliveira

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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