sexta-feira, 28 de abril de 2023

Há cem anos

A inauguração de Wembley recebeu 250 mil pessoas, e quase terminou em tragédia.

Final da Copa da Inglaterra de 1923 teve público estimado em mais de 250 mil presentes, contou com a presença do Rei, deixou milhares de feridos e marcou a memória do futebol inglês.

Até a criação do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950, o símbolo maior da popularidade atingida pelo futebol cabia ao Wembley, estádio localizado na cidade de Londres, capital do Reino Unido. 

Utilizado pela primeira vez em 28 de abril de 1923, na final da Copa da Inglaterra (FA Cup) em que o Bolton venceu o West Ham por 2 a 0 para um público estimado em mais de 250 mil pessoas, essa que é uma das arenas mais famosas do mundo agora completa 100 anos de uma história repleta de curiosidades, antes, durante e depois de sua inauguração.

Hoje, transformado em moderna arena após longo período reforma entre 2000 e 2007, quando passa a ser propriedade de The Football Association (a federação inglesa), o estádio de Wembley foi originalmente projetado como parte da British Empire Exhibition de 1924, um dos muitos eventos do tipo “exposição universal” realizados à época.

Essas grandes e custosas exibições serviam como momento especial para projetar a imagem desses países, no caso das potências, as suas ambições imperialistas (o Brasil, por exemplo, realizou a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, em 1922).

Era uma oportunidade de apresentar inovações tecnológicas, proporcionar oportunidades comerciais e, de certa forma, também impulsionar o interesse dos grupos econômicos locais ao redor do globo. 

O nome do Wembley, inicialmente, não à toa, era “The Empire Stadium” (O Estádio Imperial).

Portanto, erguia-se naquele momento um símbolo do poderio do império e da grandiosidade dos feitos do capitalismo britânico, elaborado exatamente para causar impacto visual e projetar uma imagem de solidez do Reino Unido e de suas colônias após a I Guerra Mundial.

Quase demolido: Desenvolvido por um grupo de empreiteiros e projetado para receber até 126 mil espectadores, o estádio de Wembley não tinha previsão de ter tanta longevidade. 

Assim como quase toda a estrutura da grandiosa “Exhibition” realizada em um imenso terreno de Wembley Park, no subúrbio de Londres, a ideia original era simplesmente demolir o estádio logo em seguida, uma vez que desde o começo a estrutura era considerada financeiramente inviável.

Isso só não aconteceu porque o investidor imobiliário James White teve a ousada ideia de adquirir o que sobrou do evento, especular sobre a estrutura e repensar sobre a demolição do estádio. 

White morre pouco depois (em suicídio, em razão de problemas financeiros) e quem acaba ficando com o Wembley é seu funcionário, o jovem Arthur Elvin, um rapaz de 25 anos que havia lutado na guerra e depois trabalhado como vendedor de cigarros em um quiosque da “Exhibition” (!). 

Foi Arthur Elvin quem se responsabilizou, ao longo de muitas décadas, por manter o gigantesco estádio de Wembley de pé, através de uma sociedade criada para adquirir a estrutura.

O fato era que praças daquela magnitude não eram comuns. 

Era uma época em que os clubes esportivos de futebol e rugby já construíam as suas próprias praças desportivas que, ainda que com menor capacidade, já eram capazes de receber públicos de mais de 60 mil espectadores (como se imagina, em condições bem pouco confortáveis).

Diferente do que ocorreu no Brasil e nos principais centros do futebol da Europa nas décadas seguintes, a Inglaterra não costumava erguer grandes estádios públicos. 

Isso obrigava a Football Association (FA, a federação inglesa) a buscar acordos para utilizar praças esportivas companhias privadas e clubes (que já eram em sua maioria sociedades limitadas) na ocasião da grande final da FA Cup, prioritariamente na capital Londres.

A FA Cup, que em 2023 será disputada entre Manchester United e Manchester City, é a competição de futebol mais antiga do mundo ainda em disputa, realizada desde 1872. 

Só não havia completado 50 anos quando da inauguração do Wembley porque foi interrompida por quatro edições durante a I Guerra Mundial.

É de se imaginar, portanto, o tipo de sensação de “tradição anual” que cinco décadas de um evento quase ininterrupto provocava na população local. 

Não apenas torcedores dos clubes finalistas, mas o público em geral se excitava para assistir ao evento decisivo da competição. 

O fluxo de pessoas no sofisticado sistema ferroviário britânico aumentava consideravelmente rumo a Londres e a própria população da metrópole se mobilizava em massa para testemunhar a final da copa.

É certo que já havia registros de finais com mais de 100 mil presentes no estádio Crystal Palace, como em 1901 (110 mil); em 1905 (101 mil), em 1913 (121 mil). 

Entretanto, em razão de problemas financeiros dos proprietários desse estádio, a final da FA Cup passou a ser realizada em Stamford Bridge após a guerra. 

Um estádio menor que não comportava a demanda desse grande evento anual, que recebeu no máximo 72 mil espectadores.

É em virtude desse quadro pouco estruturado de estádios que a FA vai se interessar no projeto de construção do Wembley e definir, ainda em 1921, que esta seria a sede da final da FA Cup de 1923.

É quanto a história começa acontecer.

A Final da FA Cup de 1923: Poder realizar a final de 1923 em um estádio capaz de receber 126 mil espectadores era um sonho para as pretensões da FA. 

O problema é que o evento, que historicamente já tinha procura massiva, acabou se tornando ainda mais atrativo pela própria inauguração de um novo colossal estádio e por ocorrer dentro da estrutura de um evento global tão divulgado como a British Empire Exhibition.

Como agravante, dentre os finalistas estavam o West Ham, um clube crescentemente popular de uma região operária da própria Londres, e o Bolton Wanderers, à época um clube de sucesso, oriundo de uma cidade industrial da Grande Manchester, um dos principais centros futebolísticos britânicos.

Na tarde de 28 de abril de 1923, estima-se que nada menos de meio milhão de pessoas estava nos arredores do Empire Stadium, dentre londrinos que enfrentaram horas de engarrafamento e outros tantos ingleses que atravessaram o país nos trens.

De acordo com Jeffrey Hill, pesquisador do Centro Internacional de História e Cultura do Esporte da Universidade de Leicester, apenas 35 mil ingressos foram vendidos de forma antecipada, outros mais de 90 mil seriam comercializados em bilheterias próximas às catracas nas horas que antecediam a partida. 

Isso teria causado uma “assistência especulativa” imprevisível em forma de multidão.

No artigo “’The Day was na Ugly One’: Wembley, 28th April 1923” (‘Foi um dia feio daqueles’: Wembley, 28 de abril de 1923), publicado em 2004, Jeffrey Hill resgata registros jornalísticos e documentos oficiais sobre o ocorrido no fatídico dia de inauguração do Wembley, para reconstituir o acontecimento. 

A própria frase utilizada no título é a manchete do jornal The Times.

Os relatos dos repórteres apresentavam um cenário de ansiedade, incerteza (um boato dizia que o jogo seria adiado), insatisfação (torcedores com ingresso não conseguiam entrar) e desordem em meio aos restos de obra de um estádio que havia acabado de ser concluído (andaimes teriam sido usados por pessoas sem ingressos para escalar muros e portões).

A aglomeração nos corredores internos foi tamanha que as autoridades decidiram por abrir os portões para aliviar a pressão, inundando a arquibancada que já se encontrava lotada e forçando com que as pessoas buscassem se salvar já dentro do campo do jogo. 

Um repórter do Daily Mail registrou que as pessoas pulavam para o gramado com a ajuda de policiais e que ele mesmo teve que “escolher entre saltar os portões ou ser esmagado até a morte”.

Essa ocupação massiva do gramado acabou gerando a imagem histórica que simboliza esse evento: um policial sobre um cavalo branco, coordenando “tranquilamente” o movimento de uma multidão “ordeira” dentro do campo de futebol, em um estádio totalmente lotado. 

Por isso o evento inaugural do Wembley ganha o nome de “White Horse Final”, a final do cavalo branco.

Segundo as autoridades, o público presente no estádio estava entre 250 mil e 300 mil pessoas, mais que o dobro da capacidade prevista, em uma época em que onde o padrão de ocupação de espaços era bem menos rígido, hoje, muito provavelmente aquela estrutura não comportaria sequer 70 mil espectadores. 

Até 1950, nenhuma outra final foi realizada para um público maior que 99 mil pagantes.

Como resgata o artigo de Hill, o Bleacher Report registrou que uma ordem de interromper a entrada do público foi dada quando já se estimava um público de 126 a 135 mil pessoas, portanto, já em situação de superlotação. 

Em 25 minutos, de acordo com o relatório dos responsáveis pela segurança do evento, de 50 a 100 mil pessoas invadiram o estádio.

Quanto às ocorrências, a cena caótica apresentou um resultado surpreendentemente positivo: não houve nenhum registro de morte. 

O Telegraph informou apenas 50 feridos hospitalizados com maior gravidade. 

O Daily News informou que cerca de 1000 feridos foram socorridos no estádio.

Os efeitos da quase tragédia: O evento acabou sendo muito menos grave do que algo classificável como “tragédia”, levando em conta a frequência que esses tipos de desastres com mortes ocorriam no futebol britânico à época, dada a precariedade das instalações. 

Portanto, se diz que a White Horse Final tem duas consequências gerais.

Diante do baixo número de ocorrências, a inauguração do Wembley acabou produzido uma memória mítica. 

Nas palavras de Jeffrey Hill: “isso se tornou a imagem principal da memória popular acerca de Wembley 1923, simbolizado pela figura do cavalo branco. 

À época, no entanto, o cavalo branco estava ligado na mentalidade pública a outra imagem, a do Rei, George V. 

Conta-se que a presença do Rei teve uma influência apaziguadora sobre o público”.

A quase tragédia de Wembley acabou sendo utilizada como evento-modelo para promoção de uma imagem do comportamento ordeiro e disciplinado do povo britânico. 

Uma grande invenção, mas que de alguma forma deixou sua marca para a história.

Por outro lado, apesar de algumas pontuais pressões no Parlamento para a discussão mais séria sobre os fatores que causaram a quase tragédia, muito pouco se fez sobre o tema. 

Só no ano seguinte, em 1924, montou-se uma comissão para discutir os acontecimentos, no que resultou no Relatório Shortt (nome do presidente da comissão).

Esse relatório coletou depoimentos e detectou uma série de falhas no planejamento da chegada do público, mas principalmente na forma com o futebol inglês era organizado. 

A superlotação e a precariedade das instalações dos estádios ingleses era um problema gravíssimo que, inicialmente para a comissão, precisava ser regulada.

O relatório apresentou uma série de sugestões (com base em análises científicas) para que os estádios fossem reformados: inclinação da arquibancada, espaçamento das vias de circulação, venda antecipada de ingressos, ampliação do espaço mínimo por espectador (o que provocaria redução da capacidade dos estádios), instalação de barreiras, padronização e rebaixamento dos primeiros lances de arquibancada, o número mínimo de catracas para a capacidade do estádio.

Absolutamente nada disso foi colocado em prática, por uma razão controversa. 

A constituição de clubes como sociedades limitadas, portanto, o futebol já visto como mais um dos mercados de entretenimento que se desenvolviam à época, criou na esfera pública britânica uma espécie de tabu, causando um distanciamento conveniente do poder público quanto à sua responsabilidade de impor algum tipo de regulação.

O próprio relatório Shortt, sujeito à crença, acabou por sugerir que não se fizessem leis nesse sentido, sob o risco de prejudicar tal indústria ao gerar risco de endividamento dos clubes. 

O resultado do trabalho da comissão deveria servir, no máximo, como sugestões para que a própria “The Football Association” promovesse a auto-regulação dos clubes e da indústria do futebol britânico para adoção de melhores instalações.

Como esperado, muito pouco foi feito. 

Nas décadas seguintes, inúmeras tragédias com fatalidades seguiram ocorrendo no futebol inglês, mas pressionado pela dominante perspectiva política de não intervenção em atividades privadas, ao longo de muitas décadas o parlamento inglês apenas observou a indústria do futebol à distância.

Um processo de tomada de decisão mais enérgico só iria ocorrer em 1989, após a Tragédia de Hillsborough (curiosamente no governo conservador de Margareth Thatcher). 

E aí entra outra longa história...

Reportagem: Globoesporte.globo.com

 

Adaptação: Eduardo Oliveira

 

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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