O futebol pode (e precisa) esperar.
Internacional fez o teste com os jogadores. (Foto: Globoesporte.globo.com) |
É um delírio irresponsável que se pretenda fazer a bola rolar enquanto o país passa por uma escalada nos casos de infecções por coronavírus.
Um de cada vez, os jogadores se aproximavam e, sem descer do carro, tinham sua temperatura medida e eram testados para coronavírus por um profissional com roupa e equipamento de proteção.
Logo, recebiam um kit e voltavam para casa, dando lugar ao próximo da fila.
Parece uma cena de filmes de ficção científica, e de certa forma era mesmo, mas também compunha o ritual de preparação para que os atletas do Internacional voltem a treinar, o que acontece a partir dessa terça.
No Grêmio, a volta aos trabalhos será na quarta-feira (6).
São os dois primeiros clubes da Série A a retomarem os trabalhos em meio à pandemia.
A cena deixa evidente que tudo está bem longe do normal, e mesmo cogitar o retorno do futebol assume contornos de irresponsável delírio.
No mesmo dia em que os jogadores colorados passavam pela triagem, Jorginho, massagista do Flamengo há 40 anos, morria de Covid-19.
O clube rubro-negro passa a viver um dilema ainda mais intenso, pois se mostrou favorável à retomada do calendário, ao contrário do Botafogo, que através de manifestações contundentes de Paulo Autuori e Carlos Augusto Montenegro posicionou-se de forma contrária ao retorno das partidas, negando-se a entrar em campo se for necessário.
"Cada ponto que a gente perder vai ser uma vida salva", afirmou Montenegro.
A federação carioca liberou os clubes para que voltassem a treinar, mas prefeitura e governo vetaram.
No final da tarde de segunda-feira (4), a Federação Paulista e os clubes decidiram que não há previsão para o retorno do futebol no estado.
Em levantamento do GloboEsporte.com, a maioria das federações se mostrou contrária a estipular uma data para a volta do futebol.
Não é uma vez por década.
Nem sequer uma vez a cada século.
É talvez a única oportunidade de nossa época em que se exige da sociedade, e inserido nela, é claro, o futebol, uma consciência coletiva que coloque o aspecto financeiro de lado, pois essa decisão será responsável por preservar milhares de vidas.
Nesse sentido, é imoral que se pretenda fazer a bola rolar enquanto o país passa por uma escalada nos casos de infecções.
Hoje, são mais de sete mil mortos, e o pior cenário, infelizmente, provavelmente está reservado para as próximas semanas.
Como pontuou o Martín Fenandez em sua coluna n'O Globo, ao longo da história os clubes brasileiros se mostraram incapazes de se estruturar para superar com relativa tranquilidade uma situação emergencial desse quilate.
Querem voltar a jogar porque as contas têm que fechar.
Mas também é verdade que até aqui, aos trancos e barrancos, sobreviveram.
E sobreviver é justamente o verbo que precisamos saber conjugar nesse momento.
Que sobrevivamos e ajudemos os outros a sobreviverem.
A bola e as finanças que esperem.
Em um possível retorno do futebol, há uma profunda questão moral envolvida.
Nada é tão irrelevante quanto um jogo se naquele mesmo momento milhares de pessoas estão passando por situações de sofrimento e um batalhão de profissionais de saúde busca fazer com que esse sofrimento atinja o menor número de pessoas possível.
Existe, ainda, a irresponsabilidade colocada em prática, pois uma partida, ainda que sem público, envolve seguramente mais de cem pessoas, e cada uma delas corre o risco de se contaminar e colocar em risco a sua família.
A aplicação de testes em massa seria ineficiente, já que os testes disponíveis não abrangem todas as fases de contaminação.
Na sexta-feira (1º), o presidente do Internacional, Marcelo Medeiros, afirmou que "o jogador que não quiser jogar pede demissão".
É uma declaração descolada da realidade, pois não vivemos dias normais e nenhum jogador deve ser obrigado a se colocar em situação de risco.
Países europeus que hoje tentam retomar suas competições já passaram pelo período mais crítico da pandemia, e mesmo assim há forte posicionamento contrário.
Na primeira rodada de testes para uma possível volta da Bundesliga, dez jogadores mostraram resultado positivo.
No Brasil, e não apenas no futebol, o que prevalece é a lógica do desastre.
Seguindo a direção contrária em relação ao mundo, quanto maior o número de mortes, mais estridente é a vontade de desdenhar de todas as recomendações sanitárias.
No país que se despediu de Aldir Blanc, não é apenas a esperança que em cada passo pode se machucar: a própria sanidade está andando aos tropeções.
Reportagem: Globoesporte.globo.com
Adaptação: Eduardo Oliveira
Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro
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