Para matar a saudade da Taça Libertadores da América: "El Filósofo" Maturana, o técnico que revolucionou a Colômbia.
Maturana e a inédita Libertadores. (Foto: Fundação Henry Agudelo) |
Francisco Maturana praticamente forjou os conceitos do futebol colombiano moderno.
Em 1989, levou o Atlético Nacional à inédita conquista da Taça Libertadores da América.
Em 1989, a Colômbia passava por um dos períodos mais traumáticos de sua história.
No auge do narcoterrorismo, quase cem bombas explodiram pelo país no segundo semestre daquele ano.
Um avião com mais de cem pessoas foi derrubado.
Na noite de 30 de maio, um atentado matou sete pessoas em Bogotá.
Em meio a um cenário de terror, uma pincelada de maravilhamento: no dia seguinte, o Atlético Nacional, comandado por Francisco Maturana, entraria no gramado do El Campín para conquistar a primeira Taça Libertadores da América do futebol cafetero.
Como num conto escrito a quatro mãos por Gabriel García Marquez e Francis Ford Copolla, o apogeu do futebol colombiano acontecia exatamente no momento em que a sociedade sofria as terríveis mazelas do narcotráfico.
E esse período de deslumbramento com o balompié pode ser creditado em grande parte na conta de Francisco "Pacho" Maturana, que na sua juventude, para deixar claro os requintes fantásticos, fora colega de escola de Pablo Escobar.
O ingresso de Maturana no mundo futeboleiro não aconteceu ao natural.
Nascido em Quibdó (na mesma cidade de Wason Rentería, porque de fantasia se vive na Colômbia), se mudou bastante jovem para Medellín.
Na sua família, o futebol não era bem visto, e o pai, médico, fazia questão de educar os onze filhos com literatura e mitologia grega.
"Pacho" precisava jogar escondido e a decisão pelo Atlético Nacional veio assim, de supetão, durante a entrada em campo em um clássico contra o Independiente Medellín, primeira partida que assistiu no estádio.
Zagueiro de classe e íntimo da pelota, demorou para se tornar titular dos verdolagas, mas o fez em grande estilo: em 1973, aos 23 anos, era parte do time que quebrou um jejum de quase vinte anos sem vencer o título colombiano.
Foram dez anos vestindo a jaqueta verde, aproveitando também as largas noches de rumba, até que se aposentou no começo dos anos 1980.
Continuava exercendo seu ofício de dentista, como fizera durante a carreira futebolística (muitos jovens torcedores só aceitavam fazer aquela torturante obturação se fosse com o ídolo), até que um dia Luis Cubilla, já uma lenda continental, então treinador verdolaga e também seu paciente, foi ao consultório e lhe pediu que voltasse ao futebol.
E ali, na intimidade de uma cadeira de dentista, era deflagrada uma revolução no futebol colombiano.
Maturana assumiu as categorias de base do Atlético Nacional em 1986 para treinar muitos dos nomes que logo fariam história ao seu lado, como René Higuita, e começou uma imersão na cultura tática, mas sem perder a magia: na casa de Cubilla, passavam as noites conversando sobre esquemas e conceitos, embalados pelo whisky, melhor amigo dos técnicos, praticamente uma prancheta engarrafada.
Após passar pelo Onde Caldas, chegou ao time principal do Atlético Nacional para implantar um time "puro criollo", ou seja, formado apenas por jogadores colombianos.
"Se joga como se vive", acredita o técnico, que inclusive mandava os jogadores se vestirem de forma apropriada e terem certa precaução em suas andanças noturnas.
O apelido de "El Filósofo" era usado tanto pelos detratores quanto pelos que viam em "Pacho" uma espécie de Platão do vestiário.
O maior técnico da história do futebol colombiano é daquelas pessoas que sabem onde está a essência das coisas: até hoje, aos 70 anos, se detém na rua para assistir a gurizada jogando uma pelada.
E essa liberdade tornou-se o norte do histórico Atlético Nacional, quem em 1989 conquistou a primeira Taça Libertadores da América da Colômbia.
Na decisão, buscou o 0 a 2 sofrido no primeiro jogo contra o Olimpia e, nos pênaltis, Higuita se consagrou, convertendo a sua cobrança e pegando outros três chutes.
Impossibilitado de jogar em Medellín devido à capacidade do estádio, os verdolagas levantaram a taça em Bogotá.
O cenário não era gratuito e foi escolhido pelo próprio Maturana.
Graças à rivalidade com o Millonarios, a imprensa da capital castigava a equipe paisa: "Agora vão ter que nos aplaudir e é lá que vamos dar a volta olímpica", pensou (e cumpriu) o técnico.
É comum associar o futebol colombiano daquele período com o narcotráfico, e com razão, pois a certa altura quase metade dos times do campeonato eram bancados pelos cartéis.
Para a seleção colombiana, no entanto, a relação claramente não foi benéfica, como provou a Copa de 1994, e não somente pelo assassinato de Andrés Escobar, evento mais terrível: os jogadores sofriam constantes intimidações e, antes do jogo contra os Estados Unidos, o próprio Francisco Maturana revelou que sofreu ameaças de morte para não escalar determinado atleta.
Perguntado se era procurado por Pablo Escobar, diabólico mecenas daquele Atlético Nacional, para falar sobre futebol, respondeu: "E falaríamos sobre o que mais?".
As circunstâncias ainda eram nebulosas e ainda não se tinha ideia de que Escobar era um dos criminosos mais procurados do mundo.
Com uma geração de puro requinte, com Valderrama, Rincón e Usuriaga, o maestro Maturana adaptou conceitos da Holanda e do Ajax, tentando colocar alguma ordem no estilo lúdico do futebol colombiano, e assim forjou a própria personalidade do futebol cafetero.
Além da inédita Taça Libertadores da América, classificou o selecionado nacional para uma Copa do Mundo após 28 anos de ausência.
E aquela formação de 1990 é sua preferida, pois contava com um senso de organização superior à de 1994, que encantava o mundo pela impetuosidade, como no mítico 5 a 0 contra a Argentina, mas era mais individualista e menos empenhada taticamente.
A Colômbia foi eliminada nas oitavas de final diante de Camarões, no jogo marcado pela tentativa frustrada de Higuita em sair driblando, o que não feriu o orgulho cafetero após o empate obtido contra a Alemanha.
No último jogo da chave, os colombianos precisavam de um empate para obter a vaga, mas sofreram um gol quando faltavam dois minutos para o fim.
Sem pudores nem temores, no entanto, buscaram a igualdade já nos acréscimos, após Valderrama proferir um simpósio de ternura com a pelota no meio-campo e dar um passe besuntado de categoria para o gol de Rincón.
Sobre o gênio de cabelos rebeldes, aliás, o sempre elegante comandante assim disse: "A seleção sem 'El Pibe' é como vestir-se com um terno de marca, muito elegante, com uma gravata inglesa e sapatos italianos, mas não passar perfume".
Não por acaso, o último grande momento de Maturana aconteceu justamente na maior conquista do futebol colombiano.
Fora chamado para colocar nos eixos o selecionado que seria anfitrião da Copa América de 2001 e com uma nova geração, contando com Córdoba, Yepes e Aristizábal, em campanha na qual não sofreu nenhum gol, ganhou o título inédito diante de uma enfim saciada torcida colombiana, que via os muitos anos de futebol encantador serem materializados numa taça.
No ano seguinte, em sua primeira experiência na Arábia, conforme contou nessa entrevista ao jornal El Tiempo, teve uma experiência reveladora, que remetia às histórias de As mil e uma noites contadas pelo pai.
"Um dia disseram para não sair porque vinha uma tempestade de areia e eu disse para mim: 'Não vou perder isso'.
E arranquei para o deserto.
E, quando se começa a olhar a tempestade, se começa a ver que as nuvens são rosadas e a enxergar nelas o gênio que mora ali.
E os trovões vêm e vão, e se percebe que a nuvem já está vermelha.
E se vê a briga entre os gênios.
E ao fim disso a noite e as estrelas brilham.
E carro termina virado numa merda e tu também, mas que experiência!".
O homem que tornou o futebol colombiano admirado mundialmente sempre foi, desde os campinhos de Medellín, uma mente sem fronteiras, afinal de contas.
Reportagem: Globoesporte.globo.com
Adaptação: Eduardo Oliveira
Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro
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