"Excursão suicida" do Santa Cruz sofreu com ameaça nazista e teve dois mortos: conheça essa história.
Excursão do Santa Cruz em 1943. (Foto: Globoesporte.globo.com) |
HD do GE reconstrói trajeto do time durante viagem de quatro meses a capitais do Norte e Nordeste; houve receio de ataque de submarino alemão e jogadores falecidos com febre tifoide.
Era tempo de Segunda Guerra Mundial.
Submarinos alemães rondavam a costa brasileira.
O temor de um ataque bélico às embarcações era real.
Ainda assim, o então tricampeão pernambucano Santa Cruz deixou o Recife para desbravar o norte do país de navio.
Na madrugada de 2 de janeiro de 1943, o time viajou para uma excursão histórica e que mais tarde seria marcada como a "excursão suicida".
Dois atletas do clube faleceram.
Porém, não pela guerra.
A febre tifoide os atacou irremediavelmente.
E eles viraram símbolos dessa aventura, que ainda teve desertores, navegação escoltada pela Marinha, viagem compartilhada com 35 ladrões, bebedeiras e outros relatos de problemas de saúde.
Foi surreal.
Foram praticamente quatro meses longe do Recife.
Entre mudanças de roteiro e visitas às capitais Natal, Belém, Manaus, São Luís, Teresina e Fortaleza, o Santa Cruz disputou 26 jogos (12 vitórias, 7 empates e 7 derrotas), alguns deles para poder pagar despesas enquanto aguardava a liberação do governo brasileiro para o retorno.
Isso porque a navegação chegou a ser suspensa no Brasil.
Era uma medida de segurança contra possíveis ataques a mando do ditador nazista Hitler.
“Eu conheci o Guaberinha, que era um dos jogadores notáveis do Santa Cruz naquela época. Ele me contou que chorava em alguns momentos da viagem. Foi uma aventura heroica e trágica ao mesmo tempo. Entrou para a história”, conta o jornalista e pesquisador Lenivaldo Aragão, autor de reportagem sobre o tema para a revista Placar, em 1979, chamada de Excursão da Morte. De fato, foi.
Primeiros jogos e problemas: A delegação coral partiu do Recife no navio-vapor Pará.
Por segurança, em virtude dos conflitos mundiais, foi acompanhada de dois navios da Marinha de Guerra e saiu com as luzes apagadas.
Mas, tensão à parte, a viagem transcorreu sem grandes percalços.
Do porto da capital pernambucana para Natal, capital do Rio Grande do Norte.
Na cidade, o time tricolor estreou com vitória sobre a seleção potiguar por 6 a 0 e seguiu para Belém.
Era apenas a terceira vez que o clube iria ao Pará.
Já instalado na região Norte, o Tricolor começou a série de partidas.
O cartão de visitas foi apresentado com uma goleada de 7 a 2 sobre o Transviário.
A atuação poderosa fez a torcida local se animar para o duelo seguinte.
Com grande público à época, o Tricolor bateu a Tuna Luso por 3 a 1 e foi construindo uma boa reputação.
“A equipe visitante jogou uma grande partida e envolveu por completo o time local”, apontou a edição do Jornal Pequeno.
"Os despachos telegráficos da capital paraense salientam que a assistência vibrou de entusiasmo durante todo o cotejo", conta a edição do Diario de Pernambuco.
Na sequência, veio o Remo e os primeiros problemas de saúde.
O Tricolor perdeu o primeiro jogo da viagem por 5 a 2.
Nessa partida, foi revelado que vários atletas estavam intoxicados.
Ainda assim, o esquadrão tricolor seguiu com sua excursão e escreveu mais um capítulo diante da seleção paraense.
No estádio do Remo, a partida atraiu grande público e vendeu quase todas as entradas antecipadamente.
No fim, o placar de 3 a 3.
Depois, o Santa Cruz mediu forças com Paysandu e também deixou o resultado escapar no fim do confronto.
O marcador assinalou 4 a 4. Seria o fim da excursão, mas o time resolveu seguir viagem, tornando uma futura volta para Belém traumática e com duas mortes.
Os primeiros jogos da excursão de 1943:
02/01/1943 Seleção Potiguar-RN 0 X 6 Santa Cruz-PE Natal-RN
10/01/1943 - Transviário-PA 2 x 7 Santa Cruz-PE Belém-PA
14/01/1943 - Tuna Luso-PA 1 X 3 Santa Cruz-PE Belém-PA
17/01/1943 - Remo-PA 5 X 2 Santa Cruz-PE Belém-PA
21/01/1943 - Seleção Paraense-PA 3 X 3 Santa CruzPE Belém-PA
24/01/1943 - Paysandu-PA 4 X 4 Santa Cruz-PE Belém-PA
Duas semanas no rio até Manaus com bebedeiras: Em um embarque concorrido pelo público, o Santa Cruz seguiu para uma nova etapa da aventura.
O desempenho em Belém saltou aos olhos, e o clube foi convidado para ir a Manaus, na primeira visita de um time pernambucano à cidade.
Com uma embarcação mais modesta e pesada, o trajeto levaria duas semanas pelo rio.
No longo caminho, era preciso fazer o tempo passar.
“E chega a noite em que o time inteiro é flagrado na casa de máquinas de vapor, tomando um memorável pileque com alguns membros da tripulação", relata a reportagem especial da revista Placar de 1979, assinada por Lenivaldo Aragão.
No dia 7 de fevereiro, um mês e cinco dias depois de deixar o Recife, o Santa Cruz entrou em campo desgastado e debaixo de muita chuva para encarar o Olímpico, perdendo por 3 a 2.
Depois, ainda atuaria mais quatro vezes em Manaus, com três vitórias e uma derrota.
Jogos do Santa Cruz em Manaus durante excursão de 1943:
07/02/1943 - Olímpico-AM 3 X 2 Santa Cruz-PE Manaus-AM
11/02/1943 - Rio Negro-AM 1 X 5 Santa Cruz-PE Manaus-AM
14/02/1943 - Nacional-AM 0 X 6 Santa Cruz-PE Manaus-AM
19/02/1943 - Rio Negro-AM 4 X 5 Santa Cruz-PE Manaus-AM
22/02/1943 - Seleção do Amazonas-AM 2 X 1 Santa Cruz-PE Manaus-AM
Tentativa de jogos internacionais: Ignorando o temor da guerra, o Santa Cruz ainda tentou partir do Amazonas para sua primeira excursão internacional com passagens pela Guiana e pelo Peru.
A ideia, por outro lado, foi barrada pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD) sob pena de suspensão de 90 dias.
A delegação, então, fez o caminho de volta para Belém.
Deserção, mortes e paralisação da navegação mudam planos: No trajeto para a capital paraense, teve o começo do pesadelo na excursão do Santa Cruz que mais tarde receberia as alcunhas de “suicida” e da “morte”.
No navio, jogadores tiveram uma recaída de problemas que sentiram em Manaus.
A febre ressurgiu.
Os mais graves eram o goleiro King e o atacante Papeira.
Eles foram medicados, mas desrespeitaram algumas recomendações, principalmente com relação à alimentação, é o que aponta o jornalista Lenivaldo Aragão na reportagem da revista Placar.
A ideia do clube, como esse cenário, era deixar Belém e voltar para o Recife, mas o governo havia proibido temporariamente a navegação em virtude dos acontecimentos na Segunda Guerra Mundial.
Sem condições de comprar passagens aéreas, no dia 2 de março o Santa Cruz entrou em campo para dar o troco em cima do Remo.
Venceu a equipe local por 4 a 2, mas o momento de alegria durou pouco.
A equipe se abalaria com duas mortes em sequência. King e Papeira estavam internados.
O quadro de ambos era a febre tifoide.
Até que, às 2h35 (horário de Brasília) da madrugada do dia 3 de março, o goleiro faleceu no Hospital Dom Pedro I, da Beneficência Portuguesa, e foi enterrado com honrarias.
“O féretro saiu da sede da Federação Paraense de Desportos acompanhado por enorme multidão”, relata o Diario de Pernambuco ao abordar a morte de King, que iniciou a sua passagem pelo clube na excursão.
Antes, atuava pelo América-PE.
Por causa da morte do companheiro, Sidinho desistiu de deixar a delegação e ir atuar em Manaus.
Por outro lado, França e Omar resolveram aceitar as ofertas recebidas, desertaram e foram viver na capital do Amazonas.
A essa altura, Papeira estava entre a vida e a morte.
Ainda assim, três dias depois do falecimento de King, o Santa Cruz volta a entrar em campo para medir forças com Paysandu.
Antes da bola rolar, um minuto de silêncio em homenagem ao companheiro falecido.
O horário do confronto, no entanto, ainda teve uma coincidência trágica.
Internado no hospital, Papeira morreu enquanto a bola rolava.
Aquele domingo de carnaval virou um domingo de tragédia.
A continuação da excursão, com isso tudo, era surreal.
No dia seguinte, o Diario de Pernambuco traz uma página abordando vários assuntos sobre a delegação coral.
Em uma parte, avalia o empate em 1 a 1 com o Paysandu.
A Curuzu esteve lotada e, ao fim, foi invadida pelos torcedores que celebraram o jogo no campo.
O Tricolor ainda recebeu uma taça.
Ao lado do relato da partida, porém, vem a notícia da morte de Papeira, que também atraiu muitas pessoas para seu enterro, e um protesto do jornal pelo fato de o Santa Cruz seguir com a excursão em meio à tragédia.
Na edição, ainda há o anúncio de novas partidas.
E de fato, na sequência, o Tricolor empatou em 0 a 0 com a Tuna Luso.
Mais jogos em Belém, viagem com ladrões e uma longa volta: Novos fatos surgem.
Os cuidados que exigiram a internação de King e Papeira, além do custo com os enterros, deixaram a delegação coral sem dinheiro.
A situação crítica chegou ao conhecimento do governo local, que agendou um amistoso contra um combinado de atletas de Remo e Paysandu.
A renda do empate em 3 a 3 foi revertida à família das vítimas.
No entanto, o estádio esteve vazio.
Ao contrário dos primeiros jogos, o Santa Cruz parecia que já não gerava tanto interesse.
Ficou, então, um ar de decepção na excursão que se aproximava do fim... no Pará.
O Tricolor, porém, ainda perdeu por 5 a 2 para a Tuna Luso.
Na sequência, o grupo foi chamado para um torneio e atuou duas vezes no mesmo dia.
Na competição, voltou a encarar a Tuna e deu o troco, vencendo por 1 a 0.
Depois, caiu por 2 a 1 para o Transviário.
Jogos do Santa Cruz na volta a Belém durante excursão de 1943:
02/03/1943 - Remo-PA 2 X 4 Santa Cruz-PE Belém-PA
08/03/1943 - Paysandu-PA 1 X 1 Santa Cruz Belém-PA
14/03/1943 - Tuna Luso-PA 0 X 0 Santa Cruz-PE Belém-PA
18/03/1943 - Combinado Remo/Paysandu-PA 3 X 3 Santa Cruz-PE Belém-PA
21/03/1943 - Tuna Luso-PA 5 X 2 Santa Cruz-PE Belém-PA
28/03/1943 - Tuna Luso-PA 0 X 1 Santa Cruz-PE Belém-PA
28/03/1943 -Transviário-PA 2 X 1 Santa Cruz-PE Belém-PA
Derrotado no último confronto em Belém, o Santa Cruz mergulhou na reta final da excursão quase interminável.
Era o momento de retornar ao Recife. Antes, claro, algumas paradas no meio do caminho.
No dia 28 de março, a comitiva embarcou para São Luís, no Maranhão.
No trajeto de navio, para economizar dinheiro, os jogadores trocam as passagens de primeira classe pelas de terceira.
Com isso, viajam com mais 35 ladrões que estavam sendo “exportados” do Pará para o Maranhão.
“Por via das dúvidas, as 15 taças que o clube ganhou na excursão são guardadas cuidadosamente. Medida desnecessária, pois os ladrões e os jogadores acabam se tornando bons amigos”, relata a revista Placar de 1979.
Últimos jogos, ameaça alemã e trem descarrilado: Na chegada a São Luís, o navio que levava a equipe coral fica retido por motivos de segurança.
Para se manter, o Santa Cruz faz seis jogos na cidade.
No meio dessa sequência, o time venceu o Sampaio Corrêa por 3 a 0.
Por sinal, no mesmo dia, no Recife, uma equipe reserva do Santa Cruz entrava em campo pelo Campeonato Pernambucano e perdia para o Great Western por 3 a 2.
Antes dessa partida contra o Sampaio Corrêa, vale ressaltar, a volta do time para o Recife era dada como certa outra vez.
Mas, como em um novo golpe de azar, imprevistos aconteceram.
E o time foi ficando... e fez ainda mais duas partidas em São Luís.
Jogos do Santa Cruz no Maranhão durante excursão de 1943:
04/04/1943 - Nacional-MA 3 X 0 Santa Cruz-PE São Luís-MA
06/04/1943 - FAC-AM 1 X 5 Santa Cruz-PE São Luís-MA
08/04/1943 - Moto Club-MA 0 X 1 Santa Cruz-PE - São Luís-MA
11/04/1943 - Sampaio Corrêa-MA 0 X 3 Santa Cruz-PE São Luís-MA
13/04/1943 - Seleção do Maranhão-MA 2 X 2 Santa Cruz-PE São Luís-MA
15/04/1943 - Moto Club-MA 1 X 1 Santa Cruz-PE São Luís-MA
Só após os duelos com a seleção do Maranhão e o Moto Club, a delegação resolve deixar São Luís.
Primeiro, arrisca uma saída de navio, mas, no meio da noite, a embarcação retorna sob suspeita de presença dos temidos submarinos alemães.
A decisão, então, é ir para o Piauí de trem.
Não sem novos sustos.
No caminho, o veículo descarrila duas vezes, mas não deixa vítimas, conforme relato na revista Placar.
Assim e enfim, o time chega em Teresina.
Na quinta capital da excursão, o Tricolor também não se furta de fazer outro amistoso para bancar os custos.
Encara a Seleção do Piauí e vence por 4 a 3.
Jogo do Santa Cruz no Piauí na excursão de 1943:
18/04/1943 Seleção do Piauí-PI 3 X 4 Santa Cruz-PE Teresina-PI
Chega, então, a última parada da vida nômade da delegação coral.
De Teresina para o Fortaleza.
Na capital cearense, o time tem um amistoso com o Ceará.
Antes da partida, porém, o presidente da “embaixada tricolor” Aristófanes Trindade, responsável por representar a equipe, deixa os jogadores na capital e parte para o Recife.
Em campo, os atletas demonstraram muito cansaço e foram derrotados por 3 a 2 na última partida da exaustiva excursão.
Era o momento, enfim, de voltar para casa.
Jogo do Santa Cruz no Ceará na excursão de 1943:
25/04/1943 - Ceará-CE 3 X 2 Santa Cruz-PE Fortaleza-CE
Na madrugada do dia 29 de abril de 1943, quase quatro meses depois, o Santa Cruz chega ao Recife com histórias de sobra, mas sem muito tempo para contá-las.
Afinal, no dia 2 de maio, esse mesmo grupo já retornaria a campo.
Dessa vez, era momento de correr atrás da bola pelo Campeonato Pernambucano diante do Náutico.
E, assim, aquele time nem se deu conta de que já era história.
Time base na excursão: King; Sidinho II e Pedrinho; Omar, Capuco e Amaro; Guaberinha, Limoeirinho, França, Sidinho e Pinhegas.
Reportagem: Globoesporte.globo.com
Adaptação: Eduardo Oliveira
Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro
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