terça-feira, 30 de junho de 2020

Torcedor x Fã

Executivo de marketing diz em livro que nenhum clube brasileiro tem um milhão de fãs.

Ex-vice-presidente de marketing do Vasco, Bruno Maia vê diferenças entre torcedor e fã. 
Torcida do Vasco em São Januário. (Foto: André Durão)
Livro deve chegar ao mercado em julho e mostra o que falta aos clubes do Brasil.

Bruno Maia foi vice-presidente de marketing do Vasco e sempre notou a diferença do compromisso entre um torcedor apaixonado e um fã. 

O primeiro é aquele que liga a televisão e assiste aos jogos, torce, vibra. 

O outro é o que compra camisas, ingressos, é sócio torcedor. 

Sua ação vai diretamente para os cofres do clube. 

É óbvio que ambos são importantes, mas engajar o torcedor leva tempo e exige trabalho.

Maia, hoje é sócio da agência 14, de conteúdo estratégico, e está prestes a lançar livro tratando das diversas formas de melhorar a relação dos times brasileiros. 

A obra ainda não tem título definitivo, mas deve chegar em plataformas digitais no final de julho. 

Veja aqui o primeiro capítulo, em que Maia diz que nenhum clube brasileiro tem um milhão de fãs.

Nenhum clube do Brasil tem um milhão de fãs. 

Nenhum.

Para o mercado do futuro, esta verdade precisa ser encarada de forma objetiva. 

E antes que alguém se insurja contra esta frase como se fosse uma ignorância, permita-me explicar. 

Torcedor, se muito, torce. 

Fã consome, gera dinheiro. 

No mundo que se anuncia, torcedor não gerará valor efetivo. 

Quem o fará será o fã-consumidor. 

O desafio urgente de todo clube que se pretende grande no mercado brasileiro deveria ser ter 1 milhão de fãs, com nome, cpf, email, telefone e cartão de crédito cadastrado no banco de dados do clube, acompanhados por uma estratégia de atualização regular e taxa de churn (perda de clientes ativos) de menos de 5% ao ano.

CAPÍTULO 1

ACHE SEU UM MILHÃO DE FÃS.

Nenhum clube do Brasil tem um milhão de fãs. 

Nenhum.

A visão de muitos profissionais e investidores do esporte no Brasil confunde os percentuais de torcedores na nossa população como um indicativo de potencial de geração de receita ou de algum tipo de valor de mercado. 

Isso é herança do modelo antigo do relacionamento do futebol com seus investidores, baseado em comunicação de massa, exploração de mídia em camisa, placas e afins, numa época em que as torcidas eram tratadas como uma massa desforme, sem cara, nome ou CPF. 

Se era grande, ótimo. 

A TV dava conta de alcançar, levar a marca e influenciar no consumo, afinal não existiam outros pontos de contato na vida daquele torcedor.

Pelo pensamento antiquado, que ainda encontramos muito em rodas de marketing esportivo, a lógica é simples: “somos 210 milhões de brasileiros. 

Se o clube “X” tem 10% de torcedores.

Logo, seriam 21 milhões de pessoas que pra atingir e gerar dinheiro.

Estupidez. 

Se você ainda pensa assim, já te peço: não pensa alto que vai pegar mal pra você. 

Mas o pior quadro ainda é aquele diretor de clube, que geralmente não é profissional de marketing mas acha que entende muito, que ainda chega e diz: “se a gente conseguir R$ 1 de cada um por mês, ninguém nos segura”. 

Socorro!

Pra começar: se estamos falando de geração de riqueza, circulação de capitais, transferência de créditos em favor de um clube, é recomendável entender qual é a parcela da população que movimenta valores. 

Uma criança de 2 anos de idade conta entre a população do país, mas dificilmente movimenta dinheiro. 

Pode ser filho de um pai apaixonado que faça o papel de transferir grana em nome dela para o clube. 

Mas provavelmente não é o caso da maioria das crianças no Brasil.

A estimativa de população economicamente ativa no país varia muito de fontes e fórmulas de cálculos diferentes. 

Fato é que ela vem crescendo desde a década de 1990 initerruptamente. Como estamos falando de futuro, vamos pegar uma estimativa da IPEA (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada), publicada em maio de 2019, que prevê que essa taxa chegará a 73,3% da população em 2030, e trazê-la otimistamente para 2020, a uma população estimada em 210 milhões de habitantes. 

Neste caso, teríamos cerca de 154 milhões de pessoas economicamente ativas. 

Não os 210 milhões com os quais contara aquele diretor fanfarrão...

Dessas 154 milhões de pessoas, segundo a Análise do Mercado de Consumo do Futebol Brasileiro, publicada pela CNDL (Conferência Nacional de Dirigentes Lojistas) e SPC Brasil, em setembro de 2016, apenas 67,4% dizem se interessar muito por futebol. Mais um corte grande, mesmo que, ainda assim, representa muita gente. 

Se aplicamos tal taxa livremente sobre a população economicamente ativa, a fim de gerar uma ordem de grandeza (e não um dado preciso), chegamos a uma estimativa de 104 milhões de brasileiros que estão sensibilizados de forma relevante pelo futebol. 

Ora, se o cara não é atraído por futebol, ele também não deve ser contado como público consumidor a ser alcançado por um patrocinador, concorda?

Quando pensamos nos consumidores que são bancarizados, ou seja, tem uma conta em banco para movimentar dinheiro que não seja em espécie, a taxa é de 62%. 

Cruzando livremente essas taxas, chegamos então a um universo de 66,5 milhões de pessoas. 

E outros recortes podem seguir sendo feitos até que se aplique o percentual de cada torcida. 

Alguém avisa para aquele diretor que, só por essa conta rápida, os 21 milhões que ele acreditava ter já foram reduzidos para 6,65 mi. 

Menos de 1/3. Ele não vai gostar de ouvir isso, posso imaginar...

Ainda que não seja uma forma precisa de se estabelecer recortes, é um exercício que explicita a necessidade de se redimensionar o que seja o potencial financeiro do mercado do futebol brasileiro. 

Precisaremos disso para pensar o modelo de geração de receita um pra um, não mais dependente da comunicação de massa. 

Talvez nenhum clube do Brasil hoje saiba dizer, com precisão e em tempo real, qual é o tamanho da sua base de fãs consumidores, o que é muito diferente e bem mais relevante para um planejamento estratégico, do que o número tão aberto de torcedores. 

Ter a maior torcida não significará ter a maior base de fãs-consumidores.

No mundo do CRM esportivo, estamos vivendo uma caminhada em direção ao modelo de “fan centricity”, no qual o dinheiro se move quanto mais você conhece um a um dos seus fãs-consumidores. 

Provavelmente nenhum clube no Brasil, por maior que seja, consiga afirmar ter mais de 500 mil consumidores recorrentes gerando as receitas que apresentam anualmente. 

E não vale contar aqui os seguidores em redes sociais, por exemplo. 

Tem que olhar para o próprio banco de dados, tê-los com “opt-in” (a autorização que o usuário cede para diversos usos por terceiros), guardados sob uma política atual de autorização de uso para comunicação de venda, e, além disso, estar sendo convincente na comunicação com eles para que estejam comprando recorrentemente seus produtos.

Neste jogo, deve-se entender que o papel das redes sociais é construir marca, inspiração, desejo para que isso se converta em consumo e dados em plataformas próprias. 

Afinal, para acessar os dados gerados pelos fãs lá dentro delas, é necessário pagá-las. 

Poucas são geradoras de receita, como o Youtube.

“Ter uma marca forte é algo único. Mas ser dependente de uma terceira parte quando se tem uma marca relevante é como construir uma casa grande em cima do terreno do vizinho. Vai chegar um dia em que ele vai querer regular os dias em que você pode usar a sua própria casa. Nós queremos construir nossa casa, nosso jardim, no nosso terreno, pra ter controle da exposição, do alcance e dos conteúdos que nossos fãs estão recebendo”

Guillem Graell, CMO do Barcelona: Em 2019, apenas três dos vinte clubes da primeira divisão tiveram, por exemplo, taxa de ocupação média de seus estádios acima de 50%. 

Quando um destes times chegar a ter 1 milhão de pessoas dentro do seu banco de dados de fãs, com política de atualização de dados recorrentes, todos eles ativados em uma esteira regular de produtos, serviços e descontos, o mercado brasileiro começará a ter outro tamanho. 

Times ditos “médios”, ou os mais regionais, que façam esse trabalho primeiro serão maiores que os considerados grandes que ainda estiverem passando seus dias a gargarejar a tal grandeza baseada em pesquisas de audiência.

Fui VP de Marketing do Vasco da Gama por praticamente dois anos (2018-2019) e, admito, não comecei minha passagem por lá com essa visão tão clara. 

A intuição a respeito disso já existia, mas não a clareza de métodos, processos e etapas. 

Estas, eu fui desenvolvendo ao longo do tempo no cargo, aplicando-as em algumas iniciativas, e sobretudo depois, trocando com profissionais e estudos de casos de outros mercados.

Ter 1 milhão de fãs também vai muito além do que se possa conseguir com um bom programa de Sócio Torcedor. 

Ele, por sinal, é importantíssimo e deve ser a base de um programa de dados. Porém é apenas o nível básico de relacionamento do fã. 

Não bastará. Será necessário criar outras formas de geração e integração de dados, em um sistema convergente e com pessoas especializadas para planejar e potencializar estas informações. 

Esta é uma corrida em que o futebol brasileiro parte atrasado.

Deveria ser o primeiro grande desafio de um clube hoje no país que queira falar de inovação: planejar como atingirá, conquistará e reterá 1 milhão de fãs. 

Que nem o futebol pensa em ser campeão mundial, um executivo de marketing, um CEO, ou um diretor financeiro, deveriam ter emoji de coraçãozinho no olho quando falasse dessa meta. 

Criar um planejamento de aquisição de base de fãs. Investir dinheiro pesado nisso, como se fosse um camisa 10 do clube. 

Primeira meta de 50 mil, depois 100 mil, 200, 300... 

A geração de receita será exponencial quanto mais avance essa escalada. 

A taxa de retenção e atualização de dados tem que ser alta também. Idealmente, há que se mirar numa taxa máxima de 5% de perda de leads[1] por ano. 

Todos os negócios que olharemos ao falar da revolução que a inovação fará no esporte vão considerar este fator como matéria prima na geração receitas.

Vivemos numa era em que privacidade é moeda, nos acostumando a trocá-la o tempo inteiro por acessos a produtos e serviços que valem muito e são importantes para nós. 

O inventário das empresas digitais contemporâneas considera os dados dos consumidores um de seus principais ativos. 

Os clubes, se fizerem um trabalho correto, tem autoridade e confiança pra também pedir isso aos torcedores, para que, enfim, virem fãs (consumidores). 

São esses que vão fazer a diferença e cada passo nessa conquista deve ser celebrado.

Reportagem: Globoesporte.globo.com

Adaptação: Eduardo Oliveira

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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