quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Um clássico no circo

Os 90 anos do primeiro jogo de futebol feminino do Recife e suas origens no Brasil.

Turnê do Circo Nerino no Recife promoveu partida entre Sport e Náutico com direito a anúncio em jornal, em cenário que se repetiu em outras cidades do país.

Era a última semana de dezembro de 1932 quando o picadeiro do Grande Circo Nerino esteve armado nos jardins do Parque 13 de Maio, no centro do Recife. 

A companhia circense vivia naquela época sua primeira turnê pelo Norte e Nordeste do Brasil. 

Saindo do Rio de Janeiro, após viagens de trem e navio, chegara à capital de Pernambuco prometendo inovar.

No dia 29 de dezembro de 1932, portanto, há exatos 90 anos, o Circo Nerino anunciou na imprensa um grande espetáculo, com distribuição de 40 brindes e uma atração inédita: pela primeira vez no Recife, seria disputada uma partida de futebol feminino.

Em vez do campo, o picadeiro se transformou no cenário de um Clássico dos Clássicos para as mulheres. 

De um lado, o Náutico. 

Do outro, o Sport. 

Juntos, fizeram uma partida histórica.

Poucos detalhes, no entanto, são possíveis de se deduzir sobre o que aconteceu neste jogo. 

Nos jornais da época, não havia nada além do anúncio publicado pelo Jornal do Recife, que nem sequer existe mais.

Estava escrito com uma grafia ainda originária do inglês, no canto superior da página 4: "Pela primeira vez no Recife, o foot-ball feminino". 

Nos dias que sucederam o anúncio, não há mais nada. Não tem placar, detalhes do público. Nada.

O registro escasso, contudo, representa o marco de uma história ainda pouco contada, e muitas vezes até negligenciada, no Brasil.

Na década de 1930, havia um contexto social em que as mulheres estavam mais ambientadas ao espaço de suas casas, e virar notícia, para ser possível resgatá-las na história do futebol, implicava necessariamente a conquista de um espaço público. 

É o caso, portanto, dos circos. 

Assim explica a historiadora e pesquisadora, Aira Bonfim.

"Muita coisa não foi registrada e nunca vamos saber. Mas é pensar que se naquela época a população ainda não tinha se encontrado com a imagem de uma mulher jogando bola, o circo fez com que isso acontecesse", afirma a pesquisadora.

O registro pioneiro do futebol feminino com público no Recife segue uma história semelhante ao de outros estados do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, acompanhando uma tendência viva da Europa naquele período. 

Assim, outras companhias como o Circo Alcebíades, do famoso palhaço Piolin, e o Circo Queirolo também promoveram aparições nas décadas de 1920 e 1930.

Nessa época, enquanto o futebol masculino vivia a década da profissionalização, que viria em 1933, o feminino era atração de circo e poderia ser visto até mesmo como algo excêntrico.

"É um lugar periférico ao ambiente que está sendo construído para os homens e ao mesmo tempo ele existe",  observa a historiadora e pesquisadora Aira.

A interrupção: lei proíbe o futebol feminino: A história da presença das mulheres no futebol brasileiro, com base em seus registros pioneiros, pode ser contada através de uma estrutura cronológica e de classes, desenhada pela historiadora: são as filhas de uma elite nos clubes, a classe artística, com atrizes nos circos e teatros, e por fim as mulheres suburbanas, naquele que também conhecemos como futebol de várzea.

Ainda que acontecendo de forma periférica, há ingressos sendo cobrados para esses jogos, registros em jornais e inclusive campeonatos (não profissionais). 

O cenário está em crescimento, quando enfrenta uma interrupção.

Em 1941, o Decreto Lei número 3.199, assinado pelo presidente Getúlio Vargas, proíbe a prática de esportes que "não fossem adequados à natureza da mulher". 

Entre eles, o futebol. 

Essa medida só foi derrubada praticamente 40 anos depois, em 1972.

"O futebol suburbano e os próprios eventos culturais, as companhias de teatro, de circo, também são impedidas de divulgar esses campeonatos de futebol feminino dentro das suas atrações", revela Aira.

"Esse futebol não parou de acontecer, mas vai parar de crescer da mesma maneira, com a mesma visibilidade e liberdade que talvez estava acontecendo antes de 1940", completa a historiadora.

O Circo Nerino: Casa do primeiro Clássico dos Clássicos feminino, o Circo Nerino nasceu em 1913, em Curitiba, capital do Paraná, por criação da francesa Armandine Ribolá Avanzi e seu marido Nerino Avanzi, criador do Palhaço Picolino. 

Em 52 anos de história, eles percorreram o Brasil do Sul ao Nordeste e Norte, em viagens de trem, navio e até mesmo caminhões, com tratores que abriam os caminhos pelas novas estradas do país.

"O Nordeste recebeu o Circo Nerino de braços abertos. Minha mãe ficou encantada com o povo, a terra e o clima da região. Não derrubavam os circos, como costumavam fazer os do Sul do país", conta Roger Avanzi, filho dos criadores Armadine e Nerino, em seu livro "Circo Nerino".

Armandine, inclusive, era não só criadora como também uma das atrizes que apresentavam a "atração futebol feminino", ao lado de sua irmã Myris Fernandes. 

Elas vestiam uniformes dos clubes locais, em uma estratégia de fidelização que incentivava o público a comprar ingressos para três dias de espetáculo, de sexta-feira a domingo, para ver a final do campeonato.

O Nerino era o chamado "circo teatro". 

Apresentava atrações de circo na primeira parte, sendo uma delas o futebol feminino, e depois um ato teatral na segunda. 

Abarcando diferentes linguagens e culturas, conquistaram grande importância no Recife, segundo conta a pesquisadora Verônica Tamaoki, autora dos livros "Circo Nerino" e "Centro de Memória do Circo".

A companhia costumava passar longas temporadas em Pernambuco e esteve no Recife pela primeira vez justamente em 1932, época em que alugaram casas e hospedaram-se também na pensão do lutador Zeca Floriano Peixoto, filho do presidente. 

Naquele ano, chegaram em Pernambuco vindo de trem depois de um período de estadia em Maceió.

"Eles tiveram uma influência na música de Chico Science, em Alceu Valença e até Sivuca, que tocou quando criança no Circo Nerino", conta a pesquisadora Verônica Tamaoki.

Não há fontes precisas sobre a aparição do futebol feminino do Circo Nerino em outras cidades do Norte e Nordeste do Brasil, mas essa turnê também passou pela Bahia, Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte, Maranhão, Ceará, Paraíba e Pará.

Além do próprio Recife, em Pernambuco, esteve em Floresta dos Leões, Timbaúba dos Mocós, Caruaru e Garanhuns, todas no interior do estado. 

Esse trajeto foi traçado pela pesquisadora Verônica Tamaoki e por Roger Avanzi, filho dos criadores Armandine e Nerino, e sucessor do palhaço Picolino, ele tinha 10 anos na primeira vinda ao Recife e morreu em 2018, aos 96.

Teatro também abriu portas: Há um intercâmbio cultural efervescente nas décadas de 1920 e 1930, quando, além do circo, outro palco fez as vezes de campo de futebol para apresentar o futebol feminino ao grande público no Brasil. 

Foi assim no Rio de Janeiro, em São Paulo e também no Recife. 

Era o teatro.

Em 21 de fevereiro de 1937, menos de cinco anos depois desse primeiro jogo anunciado na capital, uma coluna do Diário de Pernambuco dá o tom de como o futebol feminino foi visto por parte do público local e da imprensa, a partir de uma crítica sobre a peça apresentada no imponente Teatro Santa Isabel, no centro do Recife. 

Leia na grafia original:

"O foot-ball feminino é um numero de attracção e hilariedade. Santanella (personagem da peça) distribue beijos aos campeões da platéa. Os centros medios da primeira fila actuaram com rara efficiencia. Houve até quem fizesse dois goals..."

Sabe-se muito pouco, contudo, sobre a relação das pessoas com o espetáculo do futebol feminino.

Há uma imprensa que anos mais tarde desqualifica esse lugar das artistas. 

No entanto, ao mesmo tempo em que existe a possibilidade de uma encenação sobre algo "hilário", essas mulheres também podem ser vistas como responsáveis pelo enfrentamento histórico e determinante no futebol, ao ocuparem um espaço que não era originalmente destinado a elas.

"A gente não tem como comprovar que era ridículo. Você tem essa possibilidade de ter sido um jogo engraçado ou não, mas acho que o mais relevante é pensar que é uma janela de se pensar o impossível. O futebol feminino era impensável e era impossível. E é dentro do circo que você vai estimular esse imaginário da população", defende Aira, apresentando um contraponto.

As artistas vão tencionar esse status. 

Vão permitir que hoje meu lugar de liberdade seja atingido talvez em um lugar muito maior do que 50 anos atrás.

Reportagem: Globoesporte.globo.com

 

Adaptação: Eduardo Oliveira

 

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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