Da primeira negra campeã olímpica à brasileira barrada na ditadura: a luta de pioneiros contra o racismo.
Alice Coachman, primeira mulher negra a conquistar uma medalha de ouro em Jogos Olímpicos. (Foto: Bettmann/colaborador/Getty Images) |
GloboEsporte.com conta a inspiradora batalha de atletas pouco conhecidos do público atualmente, mas que foram simbólicos na luta contra o racismo, além da performance esportiva.
Muitos momentos da história do esporte olímpico são frequentemente lembrados pelo simbolismo que tal feitos esportivos tiveram.
Atletas recordados em datas comemorativas, nos livros, pela imprensa.
Vitórias inesquecíveis.
Recordes imbatíveis.
Heróis e heroínas eternizados.
No entanto, tantas outras histórias simbólicas acabaram se perdendo no tempo, ficando escondidas em apenas em velhos recortes de jornais.
Assim como na sociedade, o racismo dentro do esporte é histórico e levou muitos atletas negros a serem pouco lembrados ainda hoje.
É por isso que o GloboEsporte.com traz a história de quatro personagens que se destacaram não apenas pela performance esportiva, mas também pelo papel simbólico que tiveram: Alice Coachman, primeira negra campeã olímpica, em Londres 1948.
Jack Johnson, primeiro boxeador negro campeão dos pesos-pesados, Jackie Robinson, primeiro atleta a quebrar a segregação racial na Liga Americana de Beisebol, e a brasileira Irenice Rodrigues, meio-fundista dos 800 metros proibida de competir durante a ditadura militar, mas que não se calou diante das desigualdades.
Guerra Civil Americana: Para compreender o tamanho da conquista dos atletas americanos, é importante relembrar um período da história.
Os Estados Unidos viveram a Guerra Civil entre 1861 a 1865, conhecida como Guerra de Secessão, entre os estados do sul e do norte.
Após a abolição da escravidão pelo então presidente Abraham Lincoln, conhecida como Décima Terceira Emenda Constitucional, a região sul, tradicionalmente escravista, rebelou-se contra os estados do norte, e o presidente foi assassinado.
Após a Guerra, surgiu nos estados sulistas o grupo terrorista Klux Klux Klan, formado por brancos racistas.
Eles não aceitavam a extensão de direitos aos negros e usavam da violência para impedir essas conquistas.
Assassinaram negros brutalmente com a justificativa de que apenas a supremacia branca importava.
Nessa época, leis segregacionistas foram legitimadas e separavam brancos e negros em espaços públicos.
Apenas na década de 1960 o movimento pelos direitos civis passou a prever a igualdade racial nos Estados Unidos, ainda que apenas na letra fria da lei.
Primeiro ouro olímpico feminino: A conquista de uma medalha olímpica de ouro para um atleta é atingir o auge da carreira.
Para Alice Coachman, a primeira negra na história a conquistar o mais alto lugar do pódio, significou mais: ter voz num país em que sua cor de pele a silenciava.
Coachman era americana da Georgia, região sul dos Estados Unidos que por longos anos viveu a segregação racial.
Sem recursos e impossibilitada de frequentar instalações esportivas por ser negra, improvisava os treinos descalça e usava equipamentos antigos para evoluir no salto em altura.
O talento foi identificado por um professor, e aos 16 anos, durante a década de 40, mudou-se para o Alabama, onde conseguiu uma bolsa de estudos.
A partir dali, quebrou muitos recordes nacionais, mas com o cancelamento das Olimpíadas de 1940 e 1944 por causa da Segunda Guerra Mundial, a primeira oportunidade de aparecer ao mundo foi nos Jogos de Londres, em 1948.
Aos 24 anos, venceu a prova do salto em altura com o recorde olímpico, tornando-se a primeira negra da história olímpica a ganhar uma medalha de ouro.
Virou lenda do esporte e possibilitou abrir novos caminhos.
"Fiz a diferença entre os negros, sendo um dos líderes. Se eu tivesse ido aos jogos e falhado, não haveria ninguém para seguir meus passos. Incentivei o resto das mulheres a trabalhar mais e lutar mais", disse Coachman em entrevista ao The New York Times, em 1996.
Apesar das glórias, Coachman, ao retornar para sua cidade-natal, não deixou de viver o racismo ao ser "homenageada".
Negros e brancos não tinham permissão para sentar um ao lado do outro no auditório da cidade de Albânia.
O prefeito sentara ao lado de Coachman no palco, mas se recusou a apertar a mão dela, e a atleta ainda precisou sair por uma porta lateral ao final do evento.
Após aposentadoria, Coachman seguiu sendo porta-voz e foi a primeira afro-americana a fechar um patrocínio com uma grande marca na época.
Até 2014, quando faleceu aos 90 anos, trabalhava para ajudar atletas com a fundação que leva seu nome.
Liga Negra de Beisebol: O período de segregação racial no pós-Guerra Civil se refletia em todas as esferas da sociedade, incluindo o esporte.
No beisebol, os proprietários da Liga Nacional adotaram um "acordo de cavalheiros" em 1876 para manter os negros fora. Nascia ali a Liga Negra de beisebol.
Durante anos, a Liga era tida como amadora, mas estavam entre os maiores orgulhos da comunidade negra.
Vários torneios entre os clubes foram realizados e excelentes jogadores tinham visibilidade similiar à dos brancos.
Na década de 40, as ligas brancas criaram a Major League e passaram a demonstrar interesse em jogadores negros.
Em 15 de abril de 1947, um conterrâneo de Coachman da Georgia rompeu com a "exclusividade" dos brancos no beisebol.
Jack Robinson Roosevelt, conhecido como Jackie, entrava para a principal Liga Americana ao assinar contrato com o Brooklyn Dodgers, de Nova Iorque, até hoje um dos principais times do país, quebrando a "linha de cor" no esporte.
Na sua primeira partida, uma multidão de 26 mil pessoas compareceu ao jogo - negros foram maioria no estádio para apoiá-lo.
Porém, durante seus primeiros anos de carreira, Robinson sofreu com sórdidos atos de ódio racista e ressentimento de torcidas, de equipes adversárias, e até mesmo de alguns companheiros.
Em uma ocasião, enquanto o atleta negro era alvo de racismo, o colega de time Pee Wee Reese disse:
"Quem sabe amanhã todos usemos 42, para que ninguém mais consiga nos diferenciar".
A frase se transformou em homenagem e, desde 2004, no dia 15 de abril é comemorado o Dia de Jackie Robinson .
Nesta data, todos os jogadores de todas as equipes da MLB utilizam a camisa de número 42, usada pelo jogador e aposentada em 1997.
Luta do século: Ser desafiado no boxe sempre fez parte entre os lutadores, mas para Jack Johnson, no InÍcio do século XX, a luta que ele precisava enfrentar ia além das habilidades nos golpes.
Filho de ex-escravos, o americano do Texas foi o primeiro boxeador negro campeão dos pesos-pesados, mas foi questionado durante toda a sua carreira.
A segregação racial daquele período não permitia a um lutador negro enfrentar os melhores lutadores daquele tempo, já que todos eram brancos e se recusavam a enfrentar afrodescendentes, ainda que já existissem lutas inter-raciais.
Apesar de tudo, Jonhson era o rei dos pesos-pesados e teve na carreira um cartel de aproximadamente 104 lutas, com 73 vitórias (40 por nocaute), 13 derrotas e 10 empates.
No período em que foi campeão mundial (1908-1915), houve um movimento chamado "grande esperança branca", onde todos queriam que o título mundial fosse tirado dele.
Na ocasião, o até então aposentado James Jeffries, branco campeão mundial e racista, aceitou suspender a aposentadoria e voltar aos ringues para "provar quem um homem branco é melhor que um homem negro".
Conhecida como a "luta do século", a disputa aconteceu com a presença de 20 mil pessoas em Nevada, nos Estados Unidos, e Jack acabou vencendo depois de 15 rodadas.
As notícias da derrota de Jeffries desencadearam numerosos incidentes de violência branca contra negros, mas a relevância daquele dia para os afro-americanos foi transformada em poema por William Waring Cuney, chamada de "My Lord, what a morning" (Meu Senhor, que manhã).
Ó meu Senhor,
Que manhã,
ó meu Senhor,
Que sentimento,
quando Jack Johnson
virou a cara branca de neve
de JIm Jeffries
para o teto.
Uma ditadura pela frente: A ditadura militar no Brasil foi desafiante para mulheres no esporte.
Proibidas de praticarem diversas modalidades ditas "masculinas", era preciso encarar as adversidades para conseguirem espaço, mas nem sempre era possível.
Foi o caso da mineira Irenice Rodrigues, atleta do Fluminense, a melhor sul-americana de sua geração na prova dos 800 metros.
Com voz ativa, sempre enfrentou as lideranças por melhores condições aos atletas negros que tinham tratamento diferente nos clubes particulares.
Além do orgulho de ser negra, lutava pelo empoderamento das mulheres no espaço esportivo.
Em reportagens encontradas no "Jornal dos Sports" de 1967, a atleta deixava claro que não se conformava com a indiferença masculina, os empecilhos e as discriminações impostas no dia a dia dos treinamentos e competições como forma de inferiorizar as mulheres.
Em 1967, às vésperas dos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg, precisou ser validada pelos dirigentes da época por praticar uma modalidade de "reserva masculina" e "desgastante para o corpo feminino".
Revoltada com o tratamento e as péssimas condições de treinamento, liderou uma greve contra o Comitê Olímpico Brasileiro, o extinto Conselho Nacional de Desportos.
O regime militar encarava com desconfiança qualquer forma de resistência e manifestação individual ou coletiva, e isso acabou custando caro para Irenice.
Em 1968, na Olimpíada do México, um incidente levou ao desligamento de Irenice da delegação brasileira, sendo forçada a retornar ao Brasil sem poder competir.
A justificativa na época foi por indisciplina.
Ela teve os documentos eliminados e foi desligada do atletismo brasileiro.
Irenice Rodrigues, uma atleta negra silenciada na mesma olimpíada que seria marcada pelo protesto dos Panteras Negras na luta contra o racismo.
Os punhos cerrados de Jommie Smith e John Carlos eternizados no pódio dos 200m representaram também, mesmo que ao acaso, a luta de uma brasileira do atletismo.
Reportagem: Globoesporte.globo.com
Adaptação: Eduardo Oliveira
Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro
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