sábado, 26 de novembro de 2022

A outra Copa

Como imigrantes vivem o Mundial bem longe do luxo dos estádios que eles construíram.

Trabalhadores na periferia de Doha têm uma Copa do Mundo particular.

Bem longe do estádio Lusail, a nave-mãe da Copa do Mundo onde Richarlison acertou aquele chute, bem longe do Souq Waqif, o mercado de rua transformado em ponto de encontro de torcedores de todo o mundo, bem longe dos arranha-céus, bem longe até da estação de metrô mais próxima.

É na periferia de Doha, num bairro chamado Asian Town, num estádio de críquete convertido em "Fan Zone", que os trabalhadores imigrantes, que formam quase 90% da população do Catar (que tem 3 milhões de habitantes), se reúnem para assistir aos jogos de uma Copa do Mundo que eles próprios construíram.

Há telões, minicampos de grama sintética para jogar bola, praças de alimentação. 

Mas, à diferença da pomposa "Fan Festival" montada no centro de Doha para os visitantes, não há venda de cervejas nem os reluzentes estandes corporativos: aqui ninguém espera vender bolas Adidas nem carros Kia nem passagens da Qatar Airways.

Mas há uma multidão que não para de chegar para lotar os 13 mil assentos do estádio e o vasto gramado. 

São quase todos homens, quase todos jovens, quase todos de países como Índia, Nepal, Paquistão, Bangladesh, Filipinas. 

Também é possível ver bandeiras de Gana, Senegal e de outras nações africanas que não estão na Copa do Mundo.

Hari, 25 anos, um encanador que trabalhou nas obras do Lusail, se diz orgulhoso de estar ali. 

Vai torcer pelo Catar, que na tarde de sexta-feira (25) foi eliminado da Copa do Mundo ao perder para Senegal. 

Está com um amigo que trabalha como faxineiro no aeroporto, também do Nepal.

Os dois vieram ao Catar em 2019 atrás de trabalho. 

Ganham o salário mínimo do Catar (1.000 riais, o equivalente a R$ 1.500) e mandam quase tudo para suas famílias. 

Nossa comunicação é difícil, então peço que escrevam seus nomes no meu bloco de anotações. 

Ao lado dos nomes eles anotam:

"Love Qatar. Love Nepal".

Ao longo de 6 horas na última sexta-feira (25) na Asian Town, o bairro também conhecido como Labour City (cidade do trabalho), e de conversas com dezenas de pessoas, foi impossível ouvir uma única queixa sobre as condições de trabalho ou de vida no Catar. 

No máximo, interrompem o diálogo educadamente e com um sorriso quando não querem mais responder.

As histórias são todas muito parecidas: chegaram faz alguns anos, dividem um quarto com mais cinco, sete ou nove ou 13 pessoas. 

Trabalham muito, descansam pouco. 

Enviam quase tudo o que ganham de volta para casa. 

Afirmam que a situação é muito pior em seus países de origem. Agradecem ao Catar pela oportunidade de trabalhar. 

Ninguém diz querer ir embora: a ideia é sempre ficar mais uns anos, juntar dinheiro e, aí sim, partir.

A grande entrada da "Fan Zone" de Asian Town tem seis acessos, um delas reservado especificamente para mulheres. 

Duas oficiais da polícia do Catar, com apenas os olhos de fora, jogam conversa fora e checam seus telefones celulares. 

Ao contrário de seus colegas homens que precisam revistar cada um que entra, elas quase não têm trabalho. 

É tarefa difícil encontrar uma mulher ali.

Até que aparece Salmeye, 42 anos, portando dois telefones celulares e uma bandeira do Níger, seu país de origem. 

Ela é casada com um americano que foi ao Catar para trabalhar como professor de crianças.

"Tive um emprego por seis dias numa empresa de entrega de comida. Um dia precisei faltar para cuidar de meu filho de sete anos que estava doente. Fui demitida e não quiseram me pagar os dias trabalhados".

Shopping e doação de órgãos: O estádio de críquete faz parte de um complexo de entretenimento montado para os trabalhadores imigrantes. 

Pertinho do estádio há uma série de supermercados que oferecem produtos a preços muito mais baixos do que no centro de Doha, dois cinemas e um shopping, onde um cabeleireiro tenta atrair clientes com uma foto em que aparecem Gianni Infantino, Vladimir Putin e o Emir do Catar.

As maiores filas estão nas casas de câmbio e nas agências de envio de dinheiro para o exterior. 

Há guichês específicos para cada país, enfeitados com flâmulas da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e da AFA (Associação de Futebol Argentino). 

Num corredor ali perto, sete jovens fazem pose diante de uma parede que ostenta um painel com fotos do Nepal.

Binesh, 31 anos, é um operário da construção civil que mostra orgulhoso no telefone celular as fotos da obra na qual está trabalhando. 

Explica que se trata de uma tubulação de gás. 

Ele e o grupo aproveitam a sexta-feira de folga para perambular por Asian Town. 

Nunca foram ao centro de Doha, nunca tiveram expectativa de entrar num estádio da Copa.

Segundo reportagem recente do "New York Times" que citou documentos do governo do Nepal, quase 185 mil pessoas deixaram o país rumo ao Catar no último ano. 

Desde 2010, pelo menos 2.100 nepaleses morreram no Catar de acordo com o jornal americano.

Na porta do maior supermercado do complexo, há um pequeno estande do programa de doações de órgãos do governo do Catar. 

Dois funcionários distribuem panfletos e abordam os homens que circulam por ali. 

Vários param, entregam documentos que são fotocopiados ali mesmo, assinam papéis.

Um dos funcionários é Dhalsim, indiano que mora no Catar "desde antes de o país ganhar o direito de ser sede da Copa", ele próprio um ex-operário da construção civil. 

Ele me diz que "doadores são heróis" e que as pessoas que se alistam no programa passam a ter prioridade caso precisem de um órgão um dia.

Uma semana antes da abertura da Copa do Mundo, o portal "Doha News", que publica notícias oficiais do governo catari, informou que 500 mil pessoas já haviam se registrado no programa de doações de órgãos do país. 

Há 10 anos, eram apenas 10 mil. 

Pessoas de 131 países diferentes aderiram.

As famílias dos mortos cujos rins, pâncreas, fígado, pulmões, coração, intestinos, ossos, pele, válvulas cardíacas, veias e córneas são aproveitados recebem uma Medalha de Honra das autoridades do Catar. 

Também ficam garantidas as despesas com funeral ou o transporte do caixão de volta para o país de origem.

Dois homens indianos assinam os papéis e caminham em direção ao estádio de críquete para acompanhar os jogos da Copa do Mundo nos telões da "Fan Zone". Pergunto por que assinaram os papéis.

"Eles vão cuidar de nós".

Reportagem: Globoesporte.globo.com

 

Adaptação: Eduardo Oliveira

 

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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