segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Clube espera audiência de conciliação

O time de várzea com 110 anos que desafia uma multinacional para continuar vivo em São Paulo.

Santa Marina está de portas fechadas após a Justiça concordar com pedido de reintegração de posse de um grupo francês. 

Clube espera audiência de conciliação para poder recuperar a sede.

A grama cresce disforme no campo de terra batida. 

Faz tempo que ninguém joga bola ali. 

Os vestiários estão vazios, pois tudo foi retirado às pressas antes da reintegração de posse. 

A quadra está silenciosa. 

E a sala de troféus, às escuras.

No portão de entrada, o cadeado avisa que ninguém entra e ninguém sai. 

Um clube tradicional da várzea paulistana está fechado até segunda ordem e luta para sobreviver.

É o Santa Marina Atlético Clube, fundado em 1913 por operários de uma fábrica de vidro. 

Desde os anos de 1940 ele existe no mesmo lugar, no bairro da Água Branca, a menos de um quilômetro dos centros de treinamentos de Palmeiras e São Paulo. 

Agora, o terreno virou uma disputa judicial.

O clube está fechado por tempo indeterminado. 

São três meses assim, desde que a Justiça aceitou o pedido do Grupo Saint-Gobain e determinou a reintegração de posse. 

Do portão para dentro, tudo tem de ser preservado até que haja uma decisão definitiva.

"Está sendo muito ruim, muito difícil mesmo. O clube era um ponto de encontro que as famílias tinham, e agora não têm mais. O tempo vai passando, e a gente vai desanimando. Até problemas de saúde eu passei a ter", contou Francisco Ingegnere, presidente do Santa Marina Atlético Clube.

Ingegnere representa a quarta geração de uma família que sempre trabalhou na Vidraria Santa Marina. 

Por décadas, a fábrica, o clube e a vila operária dividiram o mesmo espaço, algo comum no desenvolvimento industrial e esportivo da cidade no Século XX.

Foram décadas de competições em várias modalidades, incluindo atletismo, ciclismo, halterofilismo, luta greco-romana e boxe. 

As histórias são contadas por um acervo com mais de dois mil itens.

São troféus, fotografias e recortes de jornais antigos que atualmente estão trancados dentro do clube. 

Até o tricampeão mundial Éder Jofre aparece nos registros, porque lutou em um evento naquele mesmo local que hoje é motivo de disputa.

No futebol, o time se destacou em torneios amadores e tentou a profissionalização em 1960. 

Jogou a quarta divisão do Campeonato Paulista, mas acabou como lanterna e nunca mais tentou.

Valeu pelas quatro vitórias em jogos oficiais, a primeira delas em 24 de julho daquele ano, sobre o Esporte Clube São Bernardo, que atualmente disputa a Série A3 do Estadual.

A maior tradição do Santa Marina vem da várzea e das categorias de base. 

Já foram revelados ali jogadores como Lulinha e Fininho (ambos ex-Corinthians), Rodrigo Taddei (que virou ídolo da Roma) e o atacante Morato (ex-São Paulo e Vasco).

O meia Breno Bidon passou por lá antes de virar uma promessa da base corintiana, e o trabalho de formação continua: antes do fechamento, cerca de 150 crianças tinham aulas de futsal ali.

"O Santa Marina é uma iniciativa popular com 110 anos de atividades ininterruptas. O fechamento é uma violência a um espaço que oferece atividades físicas a diferentes gerações e vive de forma autônoma, sem patrocínio nem recursos públicos. Temos que defender uma cidade mais inclusiva e democrática", disse Aira Bonfim, historiadora e pesquisadora de futebol.

Sem campo, até o aniversário é fora de casa: Os times do Santa Marina seguem em atividade, mesmo sem ter onde jogar. 

As categorias do campo agora são itinerantes e rodam a capital paulista a cada semana, no papel de time visitante. 

Cada jogo virou um desafio logístico e financeiro e a confraternização já não é mais a mesma.

Mas ninguém desistiu.

"Temos lutado bravamente para não deixar dispersar, e nenhum dos membros ativos saiu desde o fechamento. Achei que o time duraria um ou dois meses, porque é difícil, mesmo, mas a galera se juntou ainda mais. Em vez de desmotivar a gente, tudo isso fortaleceu mais", contou Julio Teixeira Neto, o Julinho, que é jogador e diretor da categoria principal.

A equipe está invicta em 2023 e não perde há 31 jogos, sempre com o uniforme salvo às pressas antes da reintegração de posse. 

Outro time amador se solidarizou com a situação, o Sete de Setembro, e fez o convite para jogar quinzenalmente no campo dele.

Nas outras semanas, o Santa Marina visita os adversários e assim será até o clube ser reaberto.

"A gente vai lutar enquanto tiver força. Sempre prometi para a rapaziada: talvez a gente não consiga formar um jogador profissional aqui, mas vamos formar um homem, com caráter, de família. A gente se preocupa muito com cada um do Santa Marina. No dia que for somente futebol, deixa de ser interessante", completou Julinho.

A situação é a mesma nas outras três categorias do Santa Marina, que são divididas por faixas de idade. 

Todos criaram um rodízio de caronas, com alguns pontos de encontro pela cidade: quem não tem carro espera ali, e quem tem passa para pegar.

"Agora é só jogo fora, cada domingo em um lugar. O mais complicado é a confraternização: não tem mais como ficar conversando, fazer um churrasco. Alguns campos não têm chuveiro, então tem que correr para casa; outros não têm bar; em alguns o clima é mais hostil. Por outro lado, a gente pode contar um pouco da história do Santa Marina, porque muita gente fica sabendo e pergunta", disse Harley Cabral, técnico do time dos veteranos.

Até a festa de aniversário de 110 anos do Santa Marina teve que ser improvisada. 

O clube planejava um grande festival, com jogos o dia inteiro, mas foi obrigado a se adaptar. 

A comemoração foi no último dia 10, atrasada e longe de casa, do outro lado da Marginal Tietê, só mesmo para não deixar a data passar em branco.

Agora, o clima é de expectativa por um desfecho positivo. 

Já há quem faça planos: caso haja acordo e reabertura, um mutirão promete limpar o clube e deixar tudo em ordem para o retorno às atividades no fim de semana seguinte. 

A bola tem que voltar a rolar.

Terreno vale R$ 86 milhões: A Saint-Gobain entrou na história nos anos de 1960, quando se associou à Vidraria Santa Marina e adquiriu o terreno de 232 mil metros quadrados. 

Ao lado, os 9,6 mil metros quadrados ocupados pelo clube (cerca de 4% do total) já foram avaliados em R$ 86 milhões porque o bairro é um dos mais valorizados da capital.

Questionada pelo Globo Esporte, a multinacional não diz quais planos tem para o terreno.

A disputa entre Santa Marina e Saint-Gobain é antiga. 

O clube ocupava o terreno sem nenhuma documentação, porque sempre esteve ali, mas em 2007 assinou um acordo de comodato válido por dez anos, uma espécie de empréstimo do terreno.

Quando o prazo acabou, a briga virou judicial: a multinacional tentou a reintegração pela primeira vez (a tomada do terreno), e o clube entrou com um pedido de usucapião (a aquisição por tempo de uso). 

Entre idas e vindas, as chances do Santa Marina diminuíram a cada decisão contrária, mas há esperança.

O Santa Marina tem recebido apoio da sociedade civil no esforço decisivo para voltar ou não a funcionar. 

A tentativa é pelo tombamento do espaço como patrimônio histórico, e para isso o clube aguarda uma votação no Conpresp, o órgão municipal que trata desses assuntos.

Parte da vidraria, no terreno vizinho, já é tombada desde 2009.

Paralelamente, há uma reunião importante marcada para esta terça-feira (19), entre clube, Saint-Gobain, representantes da Prefeitura e do Ministério Público, para tentar uma conciliação.

O que diz a Saint-Gobain: Procurado pelo Globo Esporte, o Grupo Saint-Gobain diz que "sempre buscou um diálogo construtivo" com o Santa Marina e que "apoiou o clube, permitindo o uso contínuo e gratuito do espaço durante oito décadas". 

Na versão da multinacional, a disputa judicial é "a proteção dos direitos legítimos" dela.

"A Saint-Gobain reconhece a grande relevância do Santa Marina Atlético Clube para a comunidade e lamenta sinceramente a situação atual que foi provocada pelas iniciativas adotadas pelo próprio clube", diz um trecho da nota oficial.

A empresa se mostra disposta a assinar um novo comodato. 

Ao mesmo tempo, exige que o "legítimo direito de propriedade seja formalmente reconhecido e aceito". 

Se as duas coisas acontecerem, o clube conseguiria usar o espaço por alguns anos, mas, depois, poderia ser obrigado a sair de vez.

Em caso de derrota nessa disputa, a direção do Santa Marina não sabe qual será o futuro do time, se vai conseguir uma nova sede ou seguir como itinerante. 

Mas é certo, para quem vive o dia a dia do clube, que de alguma forma as atividades seguirão. 

A bola vai continuar a rolar...

Reportagem: Globoesporte.globo.com

 

Adaptação: Eduardo Oliveira

 

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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