quinta-feira, 13 de abril de 2023

Futebol inserido no social

Como o futebol ajudou Ruanda a se reconstruir depois do genocídio.

Sobreviventes contam ao Esporte Espetacular como a bola se tornou uma ferramenta de reconciliação.

Futebol une etnias que guerrearam em Ruanda há quase 30 anos.

"Vou te matar de qualquer jeito. Mas, se você mentir para mim, eu vou te matar mais rápido".

Na manhã de 7 de abril de 1994, Eric Murangwa Eugene estava deitado de barriga para baixo, com as mãos na cabeça e os olhos fechados, no chão de uma casa que ele dividia com outros jovens jogadores de futebol em Kigali, capital de Ruanda.

O autor da frase foi um dos cinco milicianos armados que invadiram a casa de Eric naquele dia.

Na véspera, o presidente de Ruanda, Juvénal Habayrimana, havia sido assassinado, o que detonou uma onda de violência jamais vista no país, o ponto mais intenso de décadas de hostilidades entre os grupos étnicos hutus e tutsis.

Aos 19 anos, Eric, um tutsi, era goleiro do Rayon Sports, o time mais popular de Ruanda. 

Mas os soldados hutus não queriam saber. 

Eles reviravam a casa em busca de armas. 

Quase 30 anos depois, na mesma rua de terra de Kigali em que tudo aconteceu, Eric reconstruiu a cena numa entrevista ao Globo Esporte.

"Eles começaram a jogar as coisas para lá e para cá. Nessa bagunça, meu álbum de fotografias caiu no chão, aberto. Um soldado virou pra mim e disse: "Você é o goleiro do Rayon?". 

Eu disse que sim. 

E ele: "Vou te matar de qualquer jeito. Mas, se você mentir pra mim, vou te matar mais rápido".

A constatação de que Eric falava a verdade salvou sua vida.

"O soldado não parecia mais amedrontador. Ficou com uma expressão iluminada no rosto. Só queria falar de futebol".

Eric Murangwa Eugene, seguiu as instruções de seus quase algozes e foi poupado do genocídio contra os tutsis. 

Muita gente não teve a mesma sorte, inclusive um irmão de Eric, de apenas 7 anos.

Cerca de 800 mil pessoas foram assassinadas, milhões foram feridas, incontáveis mulheres foram estupradas e mutiladas. 

Pelo menos 2 milhões de pessoas fugiram para outros países. 

Ruanda tinha 7 milhões de habitantes na época.

Quando o genocídio foi interrompido, 100 dias depois aquele 7 de abril, o que sobrou foi um país destruído, uma nação dilacerada. 

O dano não estava presente apenas nas pilhas de cadáveres, mas na desconfiança e no ressentimento de quem ficou.

Ruanda não era apenas um país a ser reconstruído, era também um país a ser reunificado.

"Depois do cessar-fogo, depois do genocídio, as pessoas não queriam se reunir. Sabe o que foi organizado, antes de mais nada? Um jogo de futebol".

Quem conta é Sylvestre Nzahabwanayo, ele próprio um sobrevivente do genocídio (perdeu o pai e um irmão), professor da Universidade de Ruanda, especialista em educação em áreas de conflito e autor de artigos sobre o pós-genocídio em Ruanda.

Em 11 de setembro de 1994, um jogo amistoso entre o Rayon Sports e o Kiyovu, os dois times mais populares do país, reuniu dezenas de milhares de pessoas de forma pacífica.

"Aquele jogo deu a nós, ruandeses, um senso de esperança, poucos meses depois do fim dos combates. A sensação foi de que era possível viver de novo", lembra o goleiro Eric Eugene.

Começava ali um processo deliberado de usar o futebol como pilar da reconstrução do país. 

Em 1999, foi criada a Comissão Nacional de Unidade e Reconciliação de Ruanda, com objetivo de transformar o lema "nunca mais" em realidade.

A Comissão trabalhou em conjunto com ministério do Esporte, Comitê Olímpico e outras instituições públicas e iniciativas privadas para organizar eventos esportivos que transmitissem mensagens de paz e reconciliação.

"Mais tarde, a comissão recorreu ao esporte para reintegrar os que perpetraram o genocídio nas comunidades. Organizaram partidas entre perpetradores, sobreviventes e familiares dos mortos. O esporte serviu como porta de entrada, para aproximação das pessoas", conta o professor Sylvestre.

O próprio Eric Eugene, que hoje vive entre Londres e Kigali, criou uma fundação chamada Ishami, que usa o futebol para promover valores como tolerância e reconciliação entre os jovens ruandeses.

Nesse contexto, o trabalho de uma mulher seria decisivo para o futuro do país. 

Nascida em Ruanda, Felicite Rwemarika tinha apenas um ano quando sua família foi forçada a deixar o país. 

Durante o exílio no Congo e depois em Uganda, onde se formou enfermeira, Felicite viu de perto a importância do esporte para os refugiados.

Ela voltou para Ruanda após o cessar-fogo em 1994, e tratou de incentivar algo que nunca havia existido no país. 

Mulheres deveriam jogar futebol. Felicite recebeu o ge em seu escritório em Kigali.

"Você via uma mulher sentada e dizendo coisas do tipo: "Eu não vou falar com ela porque ela ajudou a matar minha família". A outra, do lado, deprimida porque a família tinha morrido. Mas, quando elas se juntavam para treinar e jogar, havia de novo a sensação de que eram iguais, tinham um objetivo comum. Elas ganharam um papel crucial para acabar com os conflitos e construir a paz".

Felicite Remwarika criou a AKWOS (Associação das Mulheres de Kigali no Esporte) e foi presidente da Comissão de Futebol Feminino dentro da Federação Ruandesa de Futebol. 

Desde 2018 ela é um dos 99 membros do Comitê Olímpico Internacional. 

Uma das seis árbitras mulheres levadas pela FIFA (Federação Internacional de Futebol) para a Copa do Mundo do Catar, em 2022, é ruandesa: Salima Mukansanga.

A pacificação de Ruanda por meio do futebol teve, ainda tem, a participação de mais gente que sofreu com a guerra. 

Como Jean Baptiste Kayiranga, autor de um gol histórico para o futebol daquele país.

Em março de 1994, o Rayon Sports derrotou o Al Hilal, do Sudão, por 4 a 1 e se classificou para a segunda fase da Copa dos Campeões da África, um feito inédito. 

Um mês depois, o genocídio teve início, e o Rayon não pôde continuar sua aventura continental.

A onda de violência levou Jean Baptiste a tentar fugir do país. 

Foi parado numa blitz quando tentava escapar pelo sul, rumo ao Burundi. 

Até 1994, os documentos de identidade dos ruandeses indicavam se a pessoa era tutsi ou hutu, esse classificação foi abolida após o genocídio.

Tal qual seu amigo e colega de time Eric Eugene, Jean Baptiste já tinha certeza de que seria assassinado quando foi reconhecido por um soldado.

"Ele olhou para mim e disse: "Ei, esse aí é o Baptiste. Rapaz, o que você está fazendo aí?". 

Ele me cumprimentou. 

As pessoas que estavam em volta prontas para me matar começaram a se afastar. 

"Você não vai morrer".

Jean Baptiste finalmente conseguiu fugir. Rodou por outros países do continente até conseguir voltar a Ruanda. 

Com a situação estabilizada, chegou a ser convocado para a seleção nacional. 

Hoje é técnico de futebol. Mas ensina muito mais para seus alunos, de 5 a 17 anos.

Os resultados de Ruanda no futebol de alto rendimento são modestos tanto no masculino quanto no feminino. 

Mas isso importa pouco no contexto de um país destruído e dividido por um genocídio há menos de 30 anos. 

Hoje Ruanda é o país mais seguro da África.

"Aqui ninguém é hutu, ninguém é tutsi. São todos ruandeses", conta Jean Baptiste, cercado de crianças no campo de terra de uma escola ao sul de Kigali.

Reportagem: Globoesporte.globo.com

 

Adaptação: Eduardo Oliveira

 

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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