segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A queda dos soviéticos e os estaduais no Brasil

Organização atual dos campeonatos estaduais no Brasil é prejudicial principalmente para potências regionais do Centro-Oeste, Norte e Nordeste do país.

No verão de 2023, enquanto circulava pelo centro de Londres, resolvi matar tempo em um pequeno sebo. 

Entre as bagunçadas sessões de estantes que se acumulavam, fui naturalmente atraído a duas prateleiras quase vazias abaixo de uma placa indicando a sessão de esportes. 

Praticamente todos os poucos livros nessas prateleiras eram biografias de jogadores e treinadores de futebol, alguns dos quais eu jamais havia ouvido falar.

Ainda assim, mesmo entre nomes como Beckham e Guardiola, nada que realmente me chamasse atenção. 

A única exceção foi um pequeno livro verde de pouco mais de duzentas páginas escrito na década de 90 chamado Football Against the Enemy, de Simon Kuper. 

Uma rápida olhada na contracapa e saltavam palavras como guerras, revoluções e ditaduras, exatamente o tipo de leitura relacionada a esportes que eu mais gosto.

De volta ao hotel, li os dois ou três primeiros capítulos e a minha decepção fez com que o livro ficasse abandonado por alguns bons meses, até que resolvi dar ao livro uma nova chance e terminá-lo, dessa vez. 

A maioria dos capítulos, assim como na primeira leitura, não me trouxe muitas coisas novas ou interessantes, mas a discussão sobre as mudanças no futebol soviético após a dissolução do país mudou a forma como eu vejo os estaduais no Brasil. 

No último mês, publiquei aqui um artigo discutindo a organização das quatro divisões do futebol brasileiro, e dessa vez vou mudar o foco para competições estaduais e regionais. 

A base para a discussão, como mencionado, vem da discussão de Kuper sobre os clubes soviéticos, um argumento que nunca vi ser desenhado nas infinitas e repetitivas discussões sobre mudanças nos campeonatos estaduais.

Quando se discute a influência da dissolução da União Soviética e da Iugoslávia (e da Checoslováquia, em menor escala) no futebol da região, o foco quase sempre é a queda de desempenho das seleções. União Soviética e Iugoslávia fizeram a primeira final de Eurocopa da história, em 1960, com soviéticos saindo campeões. 

Na mesma edição, Checoslováquia ganhou a disputa de terceiro lugar contra França, colocando os 3 países dissolvidos como as 3 principais potências da primeira Euro. 

Em contrapartida, pouco se fala sobre como times locais foram impactados com essas dissoluções, e essa reflexão é fundamental para o futebol brasileiro entender o que fazer com seus campeonatos estaduais e regionais.

Conforme explicado por Kuper no quinto capítulo de seu livro, dedicado ao futebol soviético, a liga era dominada por times ucranianos e, principalmente, russos. 

Ainda assim, países menores também possuíam times de grande relevância representando suas respectivas regiões, como eram os casos do Dinamo Tbilisi, Nevchi Baku, Dinamo Minsk e Yerevan Ararat, que representavam com eventual sucesso Geórgia, Arzebaijão, Bielorrússia e Armênia, respectivamente, no certame soviético. 

Enquanto o Dinamo Tbilisi ganhou o campeonato soviético em 2 ocasiões, 1964 e 1978, Yerevan Ararat e Dinamo Minsk foram campeões em uma única ocasião. 

Os armênios ganharam o campeonato em 1973, ano em que também foram campeões da copa soviética, enquanto os bielorrussos foram campeões soviéticos em 1982.

Para além dessas potências regionais que competiam em bom nível dentro da União Soviética, as grandes potências do antigo país disputavam em alto nível competições continentais. 

Dynamo Kyiv, maior campeão soviético com 13 títulos, colecionou boas participações na Champions entre as décadas de 70 e 80, totalizando quatro quartas-de-final e outras duas semifinais em oito participações em duas décadas. 

A partir da década de 90, com o fim da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), seu número de participações aumentou, mas o nível de suas participações diminuiu drasticamente. 

Ainda conseguiu mais uma participação em quartas-de-final e outra semifinal nos anos 90, passando da fase de grupos uma única vez, em 2015/2016, desde a virada do século.

Não apenas o Dynamo Kyiv demonstra esse cenário, mas Kuper, em seu livro, chega a descrever vitórias maiúsculas do Spartak Moscow, segundo maior campeão soviético, sobre o Liverpool e do CSKA, quarto maior campeão, sobre o Barcelona. 

Até mesmo o Yerevan Ararat, em sua única participação na Champions, só foi eliminado nas quartas-de-final ao perder por 2 a 1 para o Bayern de Munique no placar agregado (vencendo a volta, na Armênia, por 1 a 0). 

Olhando para a Ioguslávia, o Estrela Vermelha chegou a ser campeão continental há pouco mais de 30 anos. 

Com as dissoluções soviéticas e iugoslavas, no entanto, essas boas participações praticamente cessaram.

Não só o Dynamo Kyiv falhou em tornar o campeonato ucraniano mais competitivo, servindo como um pilar sobre os quais os outros times do país poderiam crescer, mas o maior clube ucraniano deixou de ser competitivo em um ambiente infértil. 

O mesmo vale para todos os outros clubes citados nos parágrafos anteriores. 

O Yerevan Ararat, por exemplo, hoje briga pelas últimas posições no praticamente insignificante campeonato armênio.

O meu ponto, trazendo a discussão para os campeonatos estaduais no Brasil, é que as potências regionais (principalmente do Norte e do Nordeste) são as principais prejudicadas, e deveriam ser as maiores interessadas em mudar a organização do futebol nacional. 

O acesso do Mirassol à primeira divisão nacional não acontece por acaso, assim como boas campanhas num passado não tão distante de Guarani, Ponte Preta, Portuguesa, São Caetano, Barueri e Santo André, entre outros, não surgiram de um vácuo. 

Não é coincidência que praticamente todos os times pequenos pegando o elevador do Campeonato Brasileiro da Série B para a principal competição nacional venham de uma pequena parte do território. 

Essa é justamente a parte do território brasileiro com maior nível competitivo, e o nível de competição é uma variável fundamental para o crescimento de um time.

A própria venda recente da Portuguesa é prova disso, com Alex Bourgeois, um dos principais líderes do projeto, admitindo que boa parte do racional para escolha da Lusa vem do fato de estar no eixo Rio-São Paulo.

Pensando em times como Remo, Paysandu e Amazonas, no Norte, seus respectivos campeonatos estaduais são insuficientes para sustentar um nível competitivo que permita alçar voos maiores. 

Assim como Dynamo Kyiv não conseguiu erguer o nível do futebol ucraniano como um todo após a dissolução da União Soviética, Remo e Paysandu sozinhos não conseguem (e arrisco dizer que nunca conseguirão) aumentar a relevância do futebol paraense como um todo no cenário nacional. 

O mesmo serve para dezenas de outros times espalhados ao redor do país, com exceção de alguns poucos estados no Sul e Sudeste do país. 

Repito: não é coincidência que São Caetano, Barueri, Santo André e Mirassol tenham se aventurado na Série A nesse século, enquanto times como ABC, Botafogo-PB e Remo tenham que se contentar com flutuações entre do Campeonato Brasileiro da Série B e Campeonato Brasileiro da Série D do futebol brasileiro.

A solução para o problema? 

Me parece urgente que essas potências regionais abandonem seus campeonatos estaduais e passem a disputar somente campeonatos regionais e nacionais. 

Se o campeonato paraibano não oferece o suporte necessário para que Botafogo-PB ou Campinense se consolidem nacionalmente, um foco maior em campeonatos regionais ofereceria a esses clubes maiores condições de fazer melhores campanhas nacionalmente. 

Os campeonatos estaduais, no meu entendimento, deveriam servir apenas como acesso a campeonatos regionais, que por sua vez deveriam dar acesso a campeonatos nacionais. 

E se os clubes brasileiros de maior porte não vão jogar apenas o Campeonato Brasileiro num futuro próximo, a divisão do calendário deveria se dar entre campeonatos nacionais, internacionais e regionais, com um abandono completo dos estaduais.

No funil que descrevi em meu último artigo por aqui, os campeonatos regionais deveriam ser mais inchados que do Campeonato Brasileiro da Série D, dando acesso à quarta divisão nacional. 

Os campeonatos estaduais, da mesma forma, deveriam ser ainda mais inchados que os campeonatos regionais, servindo como boca do funil do futebol profissional no país. 

Em virtude de suas menores distâncias, campeonatos estaduais são mais viáveis para times menores buscando acesso a um maior nível competitivo, não necessitando a participação de grandes clubes para que sejam viabilizados. 

Continuar com a estrutura atual dos campeonatos estaduais e inchar do Campeonato Brasileiro da Série D ou, ainda pior, criar um Campeonato Brasileiro da Série E, contribui para o que chamei de “grande praga da monotonia” em meu último artigo.

Para além disso, essa monotonia também contribui para que potências regionais fiquem patinando no próprio lugar, falhando tanto em alçar voos maiores por conta própria quanto em elevar o nível de times menores em seus estados.

Visto que tornar cinco ou seis clubes de cada estado relevantes nacionalmente é absolutamente inviável, o futebol brasileiro tem duas opções. 

A primeira, focando em campeonatos regionais e em melhores regulamentos nas divisões inferiores do futebol nacional, transformaria clubes como ABC, Botafogo-PB e Remo no que Dinamo Tbilisi, Dinamo Minsk e Yerevan Ararat foram nas décadas de 60 a 80. 

Campeonatos estaduais periféricos não conseguem juntar mais que dois ou três clubes relevantes nacionalmente, enquanto competições como a Copa do Nordeste e a Copa Verde facilmente reúnem uma dezena de potências regionais. 

Esse maior número de grandes clubes aumenta o número de olhos observando a competição, atraindo mais torcedores e, por consequência, patrocinadores, contribuindo para um aumento no nível técnico de todos os clubes envolvidos.

A segunda, que consiste numa tola insistência nos campeonatos estaduais como conhecemos hoje, mantém ABC, Botafogo-PB e Remo como versões brasileiras do que Dinamo Tbilisi, Dinamo Minsk e Yerevan Ararat se tornaram na Europa. 

E essa discussão se torna ainda mais importante numa semana em que Evandro Carvalho, presidente da Federação Pernambucana de Futebol, defende a implantação de travas de segurança para que times como o Mirassol deem espaço a times como o Santa Cruz. 

Se Evandro realmente tiver qualquer preocupação com o sucesso esportivo do Santa Cruz, talvez devesse começar defendendo que o tricolor deixe de disputar o principal campeonato de sua federação, passando os 4 primeiros meses do ano focando em uma Copa do Nordeste com mais datas.

Reportagem: Globoesporte.globo.com

 

Adaptação: Eduardo Oliveira

 

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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