sexta-feira, 22 de abril de 2022

Histórias do Ferro Carril

Ferro Carril Oeste, um gigante adormecido no coração de Buenos Aires.

Clube do bairro de Caballito foi bicampeão argentino nos anos 1980, mas há duas décadas disputa as divisões inferiores. 

Na próxima fase da Copa Argentina, vai encontrar o Boca Juniors.

Quem passa os olhos de forma rápida pela classificação da segunda divisão argentina talvez nem perceba que perigosamente próximo das últimas colocações do torneio de 36 times (sim, a AFA está fora de controle) encontra-se um clube bicampeão nacional. 

Na próxima fase da Copa Argentina, inclusive, esse gigante anestesiado que hiberna no centro geográfico de Buenos Aires enfrenta o Boca Juniors, entra no confronto na condição de convicto azarão, mas nem sempre foi assim. 

Adormecido há mais de vinte anos nas divisões inferiores, nos anos oitenta o Ferro Carril Oeste perfilava-se como um dos maiores clubes da Argentina.

O clube verdolaga, fundado em 1904, conquistou o país desde o Caballito, bairro ao qual sua história está vinculada de forma íntima e indissociável. 

O nome do bairro origina-se de uma veleta, ou cata-vento, em forma de cavalo que o dono de uma PULPERÍA, ainda no século XIX, resolveu instalar no alto de um mastro, objeto que por sua vez pertencia a uma embarcação que encalhou na região onde hoje está a Casa Rosada, uma cidade erguida sobre um conto de Borges, desde sempre. 

O estabelecimento do descendente de italiano, onde se parava para comprar toda espécie de coisas, tocar uma viola vadia ou entornar uns veneninhos, logo se tornou conhecido como La Pulpería del Caballito. 

Alguns chegados de fora até contraíam dívidas, que envelheciam pelos séculos, nunca cobradas, jamais esquecidas.

Era um outro mapa de Buenos Aires quando nasceu o Ferro Carril, atrevida iniciativa de uma centena de funcionários da empresa férrea, o verde que desde sempre lhe identifica é referência ao sinal que indica caminho livre aos trens. 

Apesar de o bairro estar no centro geográfico de Buenos Aires, o clube nasceu com a denominação de Ferro Carril Oeste (que sempre manteve) pois na época da fundação a zona em que hoje está o Caballito ficava a oeste do que se considerava a capital, para lá fugia a gente que tinha grana o suficiente para escapar da urbe e passar uns dias nas quintas da região. 

Bailar um tango, a dança proibida, quem sabe. Carnear uma vaca no pátio, talvez.

No início dos anos oitenta, com a avassaladora crise econômica que a ditadura militar deixava de legado ao país, muitos clubes grandes se viram em situação estreita e precisaram se desfazer de seus grandes nomes, Maradona deixava o Boca, Kempes saía do River. 

Não dispondo de nomes dessa grife, mas contando com uma cantera excelente, o Ferro Carril se organizou para enfim conquistar o campeonato, em 1981, obtivera dois vices, perdendo as finais justamente para xeneizes e millonarios. 

Sob o comando do técnico Carlos Griguol e tendo como referências nomes como o meia Alberto Márcico, mais tarde ídolo também no Boca Juniors, o volante Gerónimo "Cacho" Saccardi, talvez o maior ídolo da história do clube, e o atacante Miguel Ángel Juárez, que acabaria artilheiro, a Locomotora del Oeste conquistou o campeonato de forma invicta.

Era a primeira conquista da história do Ferro Carril. Formado nas categorias de base do clube, um exultante Márcico usou sua história pessoal para dar o tom daquela façanha, em depoimento à revista El Grafico. 

"Até que enfim chegou a nossa vez. Depois de tanto trabalhar, de tanto sofrer. A minha alegria é muito especial, muito particular. Pensar que no ano passado meu velho, José Domingo, esteve nas duas decisões e não conseguiu nos ver campeões. Agora já não tenho ele ao meu lado, mas fiz uma promessa de levar ao seu túmulo uma placa com o escudo do Ferro. Certamente lá do céu ele também está nos acompanhando nesse momento."

O bairro onde certa vez um italiano resolvera instalar um cavalo de metal no alto de um mastro, em frente à sua bodega havia se tornado o epicentro do futebol argentino, e o Ferro Carril voltaria a passar de carroça sobre os grandes, conquistando o bicampeonato em 1984, na temporada anterior perdera o campeonato por apenas um ponto para o Independiente (era apenas o time de Bochini, que no ano seguinte venceria Taça Libertadores da América e Mundial). 

O estilo de jogo do time de Griguol desagradava nove entre dez argentinos, talvez porque seus clubes a ele tivessem sucumbido. 

Era um time sobretudo ordenado, com extrema disciplina, que tinha como pontos fortes a marcação e a bola parada. 

Entre uma taça de champán e um trago de Fernet, a torcida verdolaga cantava: “Dicen que somos un equipo aburrido/que especulamos, que jugamos para atrás/me chupa un huevo, todo el periodismo/periodisma Caballito cada vez lo quiero más”. 

Pagar a comanda por tamanho desdém coube ao River Plate (de Pumpido, Enzo Francescoli, Alonso) na decisão de 1984: com meia hora de jogo, o "entediante" Ferro Carril já fazia 3 a 0 em pleno Monumental de Núñez.

O estádio Arquitecto Ricardo Etcheverri havia se tornado destino indesejável mesmo para os gigantes de Buenos Aires. 

Com 117 anos, a cancha do Ferro Carril é a mais antiga do futebol argentino, até pouco tempo atrás ostentava suas arquibancadas antigas, portanto também atende por El templo de madera. 

Pela localização central no imenso redemoinho de esquinas de La Capital, praticamente todos os times a utilizaram para mandar jogos quando estiveram impossibilitados de usar seus próprios estádios. 

Pelo mesmo motivo, muitos shows acontecem por ali, nas cercanias de onde uma vez se encontrava a pulpería do tano Galiano, como Mercedes Sosa, ROXETTE e Guns and Roses, além de uma porção de recitais de Charly Garcia, que se sente em casa também pelo fato de ter nascido no bairro. 

Uma apresentação de 1982 foi um marco na carreira solo de Charly e, com a Guerra das Malvinas em marcha, ele faria um chiste com uma de suas letras, pedindo que "No bombardeen Caballito".

Durante sua época de glória, o Ferro Carril chegou a ter mais de cem mil sócios, e o motivo superava o sucesso futebolístico, o clube é um dos maiores da Argentina em termos poliesportivos e contava com uma estrutura social invejável. 

Nos anos oitenta, conquistou o tricampeonato sul-americano de basquete. 

Também ganhou títulos por todas as modalidades esportivas que dispunha e mandou atletas para os jogos olímpicos. 

Por tudo isso recebeu, em 1988, um reconhecimento da UNESCO. 

Mas como a locomotiva argentina segue caminhos tortos, cerca de dez anos depois, o clube decretaria falência. 

Quase perdeu a sua histórica cancha. 

Apenas uma mobilização de sócios e torcedores conseguiu retomar o clube, o que resgatou o orgulho de toda a gente do Caballito, mas por enquanto não foi suficiente para trazer o Ferro de volta à elite. 

A última vez que o clube disputou a primeira divisão foi em 2000, por consequência, desse ano também data o último enfrentamento contra o tradicional rival Vélez Sarsfield no Clásico del Oeste.

No que se refere precisamente ao césped onde se conduz a bola com os pés, algumas temporadas recentes foram particularmente cruéis, e não é puro cuento quando digo que em alguns momentos demasiado tristes eu me vi, meio sem querer, mas por vontade própria, na condição de testemunha. 

Que este texto, de certa forma, é a quitação de uma dívida adquirida tempos atrás com o clube localizado na Calle Federico G. 

Lorca 350, barrio de Caballito, onde séculos atrás um descendente de italiano resolveu instalar um cavalo de metal no alto de um mastro, em frente à sua bodega. 

Talvez um eu anterior tenha contraído também uma outra dívida na pulpería de Galiano.

Pois bem. Acontece que já corríamos para o final de 2015 e, como acontecia com alguma frequência naqueles tempos, sucedeu de certa manhã eu ter acordado em Buenos Aires. 

No dia seguinte, o Ferro Carril Oeste jogava pela semifinal do torneio reduzido, cujo campeão garantia o acesso à primeira divisão. 

No primeiro jogo contra o Santamarina, em Tandil, os verdolagas haviam empatado em dois gols. 

Em casa, portanto, não haveria escapatória, a volta do Ferro e dos anos oitenta era questão de dias. 

Estava longe demais do coração geográfico de Buenos Aires, então me desanimou a necessidade de providenciar duas viagens, uma para comprar o ingresso, outra para presenciar a história sendo colocada nos trilhos.

Eis que pela primeira vez em andanças além-mar (del Plata) me ocorreu usar de certo expediente, que é válido e justo e corriqueiro, mas de certa forma contraria a minha propensão de vagar anônimo pelas esquinas, bares e estádios de todos os hemisférios: entrei em contato com a assessoria do Ferro Carril, me identifiquei como jornalista e solicitei uma credencial, ou acreditación, para assistir ao jogo, pois queria escrever sobre tão colossal evento a ser desenrolado no estádio que já assistira de quase tudo. 

A saga verdolaga precisava, com certa urgência, de uma versão em português.

Descer do colectivo e caminhar pela Avenida Avellaneda é algo capaz de inserir o forasteiro de imediato na atmosfera do Caballito em dia de jogo. 

O estádio não é tão alto quanto os prédios que o margeiam, então a cantoria que escapa da cancha reflete nos edifícios e compõe uma melodia constante que se torna o som ambiente do bairro. 

Minha credencial estava esperando numa ventanita do Ricardo Etcheverri e, mesmo entrando com antecedência, não era fácil encontrar lugar no Templo de madera. 

Fiquei num canto de arquibancada, com vista para o campo e também para o bairro, onde desde as sacadas dos apartamentos tremulavam verdejantes bandeiras do Ferro. 

Muita gente que morava naqueles apartamentos estava no estádio, mas fizera questão de deixar sua casa devidamente enfeitada em verde para fins estéticos e territoriais, para mostrar que o Caballito era puramente Ferro Carril. 

Que o centro geográfico de Buenos Aires é Oeste.

Eu queria escrever sobre o Ferro Carril naquele dia. 

Estava preparado para contar que o jogo atrasou porque o Santamarina se viu enroscado em um piquete na 9 de Julio e que depois seu ônibus também quebrou, portanto o time precisou chegar de táxi no estádio. 

Contaria a história de como o Ferro havia começado a virar a partida no pênalti que o centroavante Salmerón cobrou, aos 45 minutos do primeiro tempo. 

Mas Salmerón mandou uma bola desnorteada, por cima da trave. 

Quando os visitantes de Tandil fizeram 2 a 0, no fim do segundo tempo, eu já não pretendia escrever sobre o Ferro Carril naquele dia. 

Era uma decepção tão absoluta que até mesmo eu, um alienígena brasilero, me vi engolido. 

Eu havia pedido uma credencial, prontamente providenciada com diligência e cordialidade, em campo o Ferro não cumprira seu papel, os anos oitenta estavam cada vez mais distantes e eu poderia muito bem ser classificado como um jornalista charlatão. 

Muitas ameaças de verdades em apenas uma frase.

As dívidas podem até não ser pagas, mas jamais são esquecidas, na pulpería de Galiano ou no Gasômetro de Porto Alegre. 

Nos anos que se sucederam ao evento do pedido da credencial para o Ferro Carril Oeste, com frequência pensava naquela tarde de 25 de novembro de 2015, tentando evitar o pênalti de Salmerón e visualizar Charly Garcia fazendo gemer os tablones de madeira. 

Como busca por expiação, mais tarde compraria uma camisa do Ferro, mas isso foi fácil, porque a camisa é bonita demais e o verde, ou o Verde, sempre me caiu muito bem. 

Também passei a acompanhar com regularidade as andanças do clube de Caballito pela B Nacional. Ano passado batemos na trave de novo, outra vez na semifinal do torneio reduzido, apenas outra vez pensando que na próxima vez farei todas as viagens necessárias, de bondi ou de tranvía, Aerolíneas de meu coração que seja, para que o desfecho seja diferente. 

Esse texto, afinal de contas, paga só a primeira parcela de uma dívida contraída tempos atrás, num lugar muito próximo de onde certa vez um descendente de italiano decidiu instalar um cavalo de metal no alto de um mastro, em frente à sua bodega.

Reportagem: Globoesporte.globo.com

 

Adaptação: Eduardo Oliveira

 

Revisão de Texto: Ana Cristina Ribeiro

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